terça-feira, 10 de junho de 2014

"Aquilo que une", pensamentos sobre o amor [Artigo ampliado]

E essa semana comemoramos o dia dos namorados. Procuramos surpresas, acertamos um horário, escrevemos uma carta, gravamos um vídeo, fazemos reservas num restaurante ou ficamos à mercê dos demais solteiros amigos que nos convidem para atividades que desviem nossa energia e atenção do fato de não estarmos, naquele momento, enamorados ou não sermos, por hora, sujeito do afeto do outro. Muita coisa se movimenta em relação ao referencial que talvez seja o mais universal de todos: nossa capacidade de enamoramento.

Já escrevi em diversos outros artigos nesse e em outros blogs sobre o fato de que vivemos submersos sob a cultura do medo. O medo causa um "rebaixamento do nível mental", como dizia Jung, e vai limitando o poder da crítica, do pensamento autônomo e da maturação emocional do indivíduo. Indivíduos pouco críticos, emocionalmente imaturos e desacostumados ao pensamento autônomo resguardam-se nos referenciais externos para validar suas concepções da vida e para formular seu caráter e valores. Basicamente quem vive no medo consome mais: produtos, modismos ou idéias. Mas o que essa difusão social do medo pode nos falar sobre nossa relação atual com o amor? Será que ainda é possível nos deixarmos verdadeiramente enamorar por outra pessoa? 


Amor nos tempos de Fobos
Fobos era uma das divindades que acompanhava Ares - deus da guerra na mitologia grega - e significava "medo". Daí a origem da palavra "fobia", que significa estar tomado por Fobos ou sob o domínio de Fobos: estar tomado pelo "daimon" (espírito) do medo. Não é um pouco do que pensamos quando começamos a responder à última pergunta do parágrafo anterior? Pensamos logo nos "riscos" de amar. Não ser correspondido, não ser compreendido, que um dia o amor acabe. São tantos riscos que nós, acostumados com uma cultura de Hermes, com uma cultura do cálculo de riscos de uma sociedade centrada em dinheiro, informações e trocas fugazes, preferimos aquilo que o sociólogo Zygmunt Bauman chamou de "amor líquido". Porque investir tudo num único fundo se investimentos variados são racionalmente mais viáveis?

Mas será mesmo que os negócios são uma metáfora razoável para compreendermos o amor? A dinâmica íntima do amor?

No mito de Eros e Psiquê - um mito latino, não grego, embora inspirado em divindades de origem grega - Lúcio Apuleio, um poeta romano, traz as as seguintes palavras saídas da boca de Eros (personificação do amor como desejo de gozo, do amor infantil e puramente hedonista):


“Tola Psique! É assim que retribui meu amor? Depois de haver desobedecido as ordens de minha mãe e te tornado minha esposa, tu me julgavas um monstro e estavas disposta a cortar minha cabeça? Vai! Volta para junto de tuas irmãs (...) O amor não pode conviver com a suspeita! - Eros
A suspeita é gerada quando a relação de Eros e Psiquê é ainda uma relação juvenil de excitação pura e desigual de uma divindade que mantém cativa uma "esposa" num palácio de ouro e mármore, cercada de cuidados e longe das vistas de Afrodite (mãe de Eros), de Hermes (pai de Eros nessa versão) e Zeus (personificação da Lei e da Ordem, socialmente, ou da consciência, psicologicamente).

Em verdade Psiquê é mantida como um objeto sexual do deus que só a visita à noite, deleita-se no escuro e foge pela manhã sem que a "esposa" o veja. É uma relação de dominação e submissão, ainda que Psiquê aprecie as noites de amor com seu "marido" invisível, o que alguns psicólogos poderiam caracterizar como uma "perversão" submissa da parte dela. Não vou citar longamente a síndrome de estocolmo, mas é inevitável que ela venha à cabeça. A condição de cativa numa terra estranha pode vir a fazer com que a vítima desenvolva algum laço afetivo de identificação com seu captor. Ainda que de uma forma muito pobre e rude, é dele, do raptor, que vem o abrigo, a comida, o conforto e o diálogo.

Quantas relações assim já não vimos ou mesmo tivemos na juventude, não é? É o tipo de relação da qual eu acredito que seja impossível sair sem aprender algo, ainda que indireta e inconscientemente. 


Mas afinal, o que é o amor?
A primeira definição da mitologia grega sobre Eros - divindade que representa o amor - está em Hesíodo, em sua Teogonia, para ele 
Amor, aquilo que une
"...antes de tudo existiu o Kháos (abismo), depois Gaia (ou Géia, Terra) de flancos amplos, assentada firmemente, oferenda perene a todos os vivos, e Eros (o Amor), o mais belo dentre os deuses imortais, aquele que derreia os membros e que, no peito de todo deus como de todo homem, doma o coração e a vontade prudente". - Hesíodo
Nessa versão Eros é "aquilo que une", uma espécie de força simultaneamente gravitacional, magnética e sexual, aquele que assegura a continuidade das espécies e a coesão interna do Kosmós (ordem). De certa forma o contrário de amor é desordem e é aí que entra o medo.

Anti-amor, Eros e Éris

Eros existe na Teogonia como força antagônica a Éris (discórdia), aquilo que separa, desagrega, despedaça. Não é de se espantar que numa sociedade contemporânea do "cada um por si", do "jeitinho", do individualismo crônico e esquizofrênico que aparta o sujeito de suas relações com o todo representado pela família, amigos, cultura etc, o amor esteja tão idealizado e distanciado.

O amor como ideal
Idealizamos tudo aquilo com o qual não temos muita intimidade. O distanciamento torna tudo mais simples, homogêneo e límpido. Basta ver expressões típicas nossas como "cultura oriental". A tal "cultura oriental" é mongol, russa, chinesa, indiana ou aborígene? Porque estas e muitas outras estão todas no oriente e são todas diversas, dotadas de riquezas únicas e muitas vezes contraditórias se comparadas umas às outras. O distanciamento causa essa falsa impressão de homogeneidade.

Vê o amor, filho?
É pequeno, não pai?
A essa distância sim...
Quando pensamos em amor idealizado, em perfeição absoluta seja de uma relação a dois (Eros), numa relação de afinidade (Philia) ou no amor universal (Ágape), estamos diante de um amor que se encontra longe da nossa visão de mundo contemporânea. Mas diferente da cultura dos Ainos (os aborígenes do Japão), não precisamos atravessar o globo para resolver essa distância e perceber que a romantização que fazemos de um povo ou de uma cultura não é compartilhada por quem vive nessa cultura.

O amor é um sentimento, não está nas Bahamas mais do que em Brunei ou no Brasil. Para não endeusarmos o amor basta nos aproximarmos, nos familiarizarmos, nos permitirmos e, exercitando ele, logo reconheceremos as necessidades e os desafios intrínsecos ao "viver em amor". Eros é mais desafiador que Éris. "Aquilo que une" é muito mais desafiador do que "aquilo que separa". Ter medo é fácil. Qualquer espécie de amor é uma questão de coragem.


A Lei de Ouro: Amor nas religiões
Existe coisa mais clara, simples e desafiadora que a lei de ouro? "Amai ao próximo como a ti mesmo", "Não faças ao outro o que é injurioso para ti", "Não trates os outros como não gostarias que te tratassem", "Não faça aos outros o que não queres que te façam a ti", "Não coloques em ninguém um fardo que não desejarias para ti, e não desejes para ninguém o que não desejarias para ti mesmo". São as manifestações "daquilo que une", do amor entre nós através das religiões.

Tenho amigos que tiveram experiências péssimas com as religiões mais próximas e tendem a enfatizar a espiritualidade e abertura para o amor que há nas religiões mais distantes. Parece que o amor só tem espaço no budismo - provavelmente como um amor universal e pouco personalizado - ou no tantra - como um amor onde poucos ocidentais conseguem ver a transcendência em direção ao "aquilo que une" maior através do ato sexual ritualizado. Todas elas são tão possíveis para cada um de nós como as experiências ocidentais de amor de um São Francisco de Assis, de uma Madre Teresa, de um Martin Luther King Jr., de algumas lindíssimas canções do Bob Marley ou mais recentemente do Jason Mraz, Caetano, Vinícius. Qualquer lista será cruel porque excluirá manifestações sensacionais.

Até que ponto projetar o amor - em outra cultura, religião, ou país - não é uma forma de se proteger dos "riscos" dele? 

"Rir é arriscar parecer tolo... Chorar é arriscar parecer sentimental... Tentar alcançar alguém é arriscar envolvimento... Expôr sentimentos é arriscar rejeição... Expôr os seus sonhos perante a multidão, é arriscar parecer ridículo... Amar é arriscar não ser amado de volta... Seguir adiante face a probabilidades irresistíveis, é arriscar ao fracasso... E apenas uma pessoa que corre riscos é LIVRE." - Alexander Lowen


O amor como conjunção
Lembro-me de uma parte de uma peça de teatro que escrevi (e nunca publiquei) em que colocava um personagem diabólico ('diávolo' significa "aquele que separa") para confrontar um personagem inspirado em Gandhi. Na cena em que o primeiro tentava agredir, ofender e irritar o segundo este simplesmente abria os braços e dizia "tudo bem, eu te aceito", ação à qual o primeiro respondia batendo o pé no chão e gritando que "é impossível brincar com você"!
Amor é como a gravidade, que une.
E é como a água, que envolve.
E é uma questão de coragem
para submergir os medos

Amor é também aceitação das diferenças. Inclusive das diferenças de gênio, opinião etc. Numa sociedade movida pelo medo ficamos soterrados, reféns em uma lógica de poder e controle que nos impede de respeitar o outro - o que invariavelmente vai nos impedir de sermos devidamente respeitados e a coisa toda opera por uma grande reação em cadeia.

Cultuando amor, cultivando aquilo que une

A isso, também, podemos chamar de cultura. Porque a palavra "cultura" deriva também daquilo que cultuamos ou cultivamos. E o que cultuamos e cultivamos diariamente em nossas mentes e corações?  Será que o culto ou cultivo diário de uma sensação de apreensão e receio não nos impede ou ao menos limita gravemente nossa possibilidade de agregar, respeitar e amar? E se, na sua vida, você pudesse fazer algo a respeito disso, o que faria? 

Enfim, esses são só alguns pensamentos meus. Não há aqui pretensão de certo nem errado e se você pensa diferente, "tudo bem, eu te aceito". :)

Renato Kress
Criador do Coach Quíron
Diretor do Instituto ATENA

Criador do Projeto Mito e Mente, cujo 7° encontro trata especificamente da temática do amor.

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