quinta-feira, 8 de maio de 2014

5 ideias (incômodas) sobre a tal resiliência

Você se considera "resiliente"? Se você anda atento à literatura de psicologia do trabalho ou mesmo à literatura "motivacional" que abarrota as frentes das livrarias de grife, provavelmente a sua resposta será um sonoro "sim"! E é mesmo provável que esse "sim" venha acompanhado de um sentimento quase heróico de orgulho da sua auto-imagem, certo?

Bem, vamos mostrar aqui cinco pontos de vista incomuns e provavelmente incômodos sobre o "fenômeno" da resiliência que provavelmente você não verá em outro lugar. Vamos mostrar o que ela é do ponto de vista da sociologia do trabalho e da liderança estratégica. Não se assuste se ela parecer exatamente o oposto do que você tem lido por aí.

Um aviso aos mais sensíveis: Não será nada "heróico".


Ideia número 1: A resiliência como resposta perversa

Acompanho os discursos do mundo do trabalho desde que li, pela primeira vez, o ensaio genial "A Corrosão do Caráter" do sociólogo Richard Sennett. Percebendo suas variações nas últimas duas décadas o que se pode perceber é que, para cada avanço em direção à valorização do ser humano, há uma reação agressiva em direção à valorização do lucro pelo lucro e do ambiente de trabalho como um espaço para a projeção de questões emocionais e psíquicas mal trabalhadas em outros meios e contextos. O mundo do trabalho acaba se mantendo como um espaço para purgarmos nossos demônios particulares, das mais diversas formas. Da mesma forma como o mundo privado pode se tornar, também, um espaço para projetarmos nossas frustrações do trabalho. É um simples deslocamento da energia que não flui numa área para uma outra área onde ela, por algum motivo conjuntural, pode fluir.

Qualquer um que já tenha trabalhado em ambientes de grandes empresas sabe o que estou falando. Quase que instintivamente percebemos, no dia a dia, onde e quando emoções represadas se expressam da forma mais desequilibrada e ostensiva possível.

Os vocábulos da moda se reestruturam e se adaptam com uma rapidez voraz para esconder o fato simples e claramente visível de que as estruturas básicas de manipulação e controle procuram arduamente se manter intactas. Em 2007 fiz um extenso trabalho sobre o que até então era uma novidade no meio acadêmico brasileiro e na cultura organizacional: o assédio moral.

Uma boa definição de assédio moral está na wikipédia: "Assédio moral é a exposição do trabalhador a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções. São mais comuns em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas, em que predominam condutas negativas, relações desumanas e antiéticas de longa duração, de um ou mais chefes dirigidas a um ou mais subordinados, desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a organização."

A essa época posturas humilhantes e degradantes de chefes sobre seus subordinados começavam a ser criticadas e, eu quis crer, de forma otimista, que um perfil um pouco mais humano e centrado nas relações com o trabalho em si poderia começar a ser valorizado acima e à frente das projeções das frustrações pessoais e psíquicas dos chefes sobre seus subordinados e dos colegas uns contra os outros. Cheguei a contabilizar casos em que uma situação de assédio moral foi julgada em favor do assediado em uma grande empresa multinacional. Claro que o assediador foi demitido tão logo tenha gerado ônus financeiro para a empresa.

Eis que então surge a "resiliência", adaptada de um conceito que pertence à física diretamente para o comportamento humano e para o contexto gerencial e laboral. Aos olhos das relações de poderes entre empregados e empregadores a "resiliência" veio salvar o empregador que assedia moralmente seu empregado operando uma reversão da culpa! Agora, o empregado que não suportar a carga desumana de cobranças, trabalhos, prazos, humilhações e constrangimentos diários não é "resiliente" o suficiente para trabalhar naquela empresa. Percebe a reversão perversa?

Ideia número 2: A resiliência como adaptação superficial

Ao contrário do que lemos nos livros, artigos e manuais de recursos humanos da moda, a "resiliência" não foi um conceito pensado para ser usado em relação a seres humanos. É um conceito da física que significa "propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora duma deformação elástica" (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa). Parte de um pressuposto que pode ser aplicado a materiais inertes como a madeira, os metais e outros corpos desprovidos de vida, principalmente de vida íntima e psíquica.

Não é porque um superior hierárquico deixou fisicamente de gritar no ouvido de um subalterno que a "pressão" oriunda daquela ação deixou de existir. Pelo contrário, a tendência é a de que ela se repita diversas vezes na forma de lembranças e, se não enfrentadas e ressignificadas de forma ativa ela vai se repetir em pesadelos, atos falhos e outros problemas de ordem psicológica. Seres humanos não são materiais inertes e conceitos da física não se aplicam às questões psíquicas nem à complexa engenharia interna dos conflitos do trabalho.

Talvez alguém, acostumado aos meus textos e íntimo dos meus estudos, vá citar Jung e seu extenso e incrível trabalho correlacionando a alquimia ao processo de individuação. É um desafio interessante e adianto desde já que a alquimia tanto na sua raiz chinesa quanto na sua raiz muçulmana, falava de transformações da matéria, de reestruturação íntima dos metais e correlacionava diversas fases com as fases de maturação da psique do ser humano. É um estudo mais profundo e mais delicado do que simplesmente forçar a resignação e a covardia sob um rótulo de "resiliência" e vender isso como uma grande qualidade, um "santo remédio" para as pressões psicológicas do mundo: "Seja "resiliente", suporte mais! Do contrário você é um fraco, um inútil, um inepto para as exigências do mundo do trabalho!" Percebe a perversidade do pensamento?

Ideia número 3: Você sabe o que é "resilir"?

O interessante das pesquisas em dicionário é que vamos descobrindo novas questões. Logo abaixo do verbete "resiliência", temos o verbete "resilir" que é o verbo que, teoricamente, ligaria o conceito à ação. Pois bem, mais uma vez o Aurélio não deu nenhum respaldo às teorias da "resiliência heróica", aquela que vemos como uma grande qualidade nos best-sellers de recursos humanos e relações de trabalho.

No dicionário o verbete "resilir" significa: "saltar para trás, retirar-se, desdizer-se, resignar-se". Não se parece muito com a leitura positiva que se faz da resiliência, como uma forma heróica de resistência a toda e qualquer pressão seja ela física, psicológica, emocional ou existencial oriunda das relações de trabalho. Me parece mais com covardia e resignação mesmo.

Aliás, ainda na pesquisa em dicionários encontramos, no Dicionário Dorsch de psicologia, o termo "resignação" significando: "aceitação, adaptação ao inevitável. Inclui sempre, como característica uma renúncia.". Resta perguntarmo-nos ao que estamos renunciando quando aceitamos nos resignar na "resiliência", não?

Ideia número 4: A quem interessa a "resiliência" vista como qualidade?

Cientistas políticos inevitavelmente pensam nas relações de interesses dos agentes dentro de um sistema. O que me leva naturalmente a pensar:

1. A quem interessa funcionários covardes demais para processar empresas com políticas internas de assédio moral constante e institucionalizado?

2. A quem interessa que os empregados sejam vítimas de uma tripla perversidade que primeiro os humilha diariamente, depois justifica a humilhação como uma forma de "treinamento da resiliência" dos seus funcionários?

3. Para completar o quadro, a quem interessa a possibilidade de chantagear emocionalmente o funcionário que queira lutar pelo seu direito de condições humanas no trabalho com ameaças de que ele será visto como "persona non grata" entre as demais empresas do Mercado caso ele reivindique administrativa ou judicialmente o seu direito de assegurar a sua dignidade pessoal, sua integridade moral e psíquica?

Ideia número 5: Você vai resilir ou vai existir?

É preciso compreender que o mundo do trabalho é um mundo político, no sentido estrito do termo, é um mundo onde várias forças estão operando para a consecução de uma causa, seja ela materializada num serviço ou num produto. Claro que o interessante e o ideal é que haja uma co-operação, que todos operem no mesmo sentido, tendo em vista a mesma finalidade básica, mas esse ideal não pode nos cegar para o fato de que esse processo de convivência e co-produção não está isento da possibilidade (comum demais, até) de gerar toda sorte de conflitos que só podem ser eficazmente resolvidos se nenhuma das partes ficar eternamente criando "agendas ocultas" (metas ocultas) completamente alheias à própria finalidade do trabalho, porque dificilmente haverá quem defenda que a meta do trabalho seja destruir a saúde mental, física e emocional do trabalhador. A não ser que você queira vender "remédios" possíveis para esses males no futuro, seja através da indústria farmacêutica, seja através da indústria de auto-ajuda organizacional vendida como estratégia, treinamento ou discursos em "best-sellers".

O que me leva a questionar: você vai resilir ou vai existir?


Por Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA

Criador dos treinamentos:
A Jornada do Herói
A Arte da Guerra Oriental
Métis: Liderança estratégica

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