terça-feira, 8 de abril de 2014

A Farsa de Hermes

Somos tantas coisas, não é mesmo? Sempre tive um comichão, uma espécie de incômodo pessoal, em responder à questão "você é o quê?" com a mesma resposta que eu daria à pergunta "você faz o quê?".

Nós não somos o que fazemos, ou pelo menos não deveríamos ser só o que fazemos, mas para poupar a nós mesmos dos embaraços desse assunto que não ousamos tocar nem mesmo nos recônditos sagrados das sessões de terapia, acabamos respondendo com a 'persona' (o nosso "cartão de visitas" socialmente validado) quando perguntados sobre o 'Self' (a totalidade da nossa vida psíquica, da qual, obviamente, não fazemos lá muita ideia).

Seres e circunstâncias
Somos o que fazemos das nossas circunstâncias, sem dúvida. Mas para além dos triunfos de nossas vontades pessoais, somos principalmente o que é possível fazer da matéria prima de nossas circunstâncias. Das nossas circunstâncias mentais, sociais, emocionais, físicas, familiares, culturais etc. Somos produtos de nossos meios enquanto somos, também, meios para a produção de novos seres. E qual a nossa circunstância cultural atual? Qual a matéria prima que nos dão para construirmos nossa identidade?

A farsa de Hermes
Vivemos sob uma situação social, cultural e psicológica que gosto de chamar de "Farsa de Hermes", em poucas palavras: uma situação em que somos sempre encorajados a adiar o pensamento e a resolução efetiva das raízes de nossos problemas enquanto somos entretidos pelo circo digital, financeiro e sexual dos impulsos de consumo imediato. Isso acontece em praticamente todas as esferas da nossa cultura, por um motivo bem simples: temos sido educados para a carência, em todos os sentidos.

Como já expliquei em diversos outros artigos defendo a ideia de que somente uma quantidade avassaladora de pessoas carentes - no mais vasto espectro do termo 'carente' - aquele que carece, que necessita, que depende de algo, ou aquele que se define enquanto ser humano pela sua situação de dependência de algo externo - consegue dar conta de consumir os paliativos que a nossa sociedade produz quase beirando a velocidade da luz.

Produz-se muito mais do que é possível consumir de forma sustentável para o meio ambiente e é necessário que haja consumidores para essa produção. Como fazer isso? Criando uma sociedade dependente, uma cultura cujo membro típico se caracterize pela carência essencial. Que tipo de mecanismo é esse?

Mitos e estrutura da psique 
Quando usei a expressão "Farsa de Hermes" não expliquei suas raízes. Vamos a ela. Hermes é o deus grego da comunicação, velocidade, transporte, da magia (especificamente a prestidigitação, movimentos rápidos das mãos que fazem aparecer ou desaparecer algum objeto pequeno, carta, dados ou a carteira no seu bolso etc), do mercado financeiro, dos mentirosos, dos ladrões, dos médicos cirurgiões, diplomatas, comerciantes, oradores etc. Enfim, o que tem a ver com ganhos financeiros a curto prazo, comunicação e trocas é com ele.

Um pouco do mito sempre nos ilustra melhor.

O mito de Hermes 
As primeiras descrições do mito de Hermes datam do período arcaico da cultura grega. Uma das mais importantes consta no Hino Homérico a Hermes, uma criação anônima dos séculos VII ou VI a.C. que trata de seu nascimento e primeiras proezas. 

O Hino abre com uma saudação ao deus, chamando-o de "Senhor do Monte Cilene e da Arcádia, dos rebanhos de ovelhas e mensageiro dos deuses". Também o nomeia como filho de Zeus, fruto de seu amor adulterino com Maia, uma ninfa filha de Atlas e Pleione, a mais velha, sábia e bela de sete irmãs, as Plêiades.

Vivendo em uma caverna, escondida dos olhares humanos e principalmente do notório e tempestuoso ciúme de Hera, esposa de Zeus, Maia deu à luz "esta engenhosa criança, este hábil planejador de artifícios, o perseguidor e capturador de gado, o pastor dos sonhos, este cidadão da noite que espreita nos umbrais". O bebê-deus não demorou para mostrar sua origem divina: nascido pela manhã, já ao meio-dia estava tocando a lira, e à tardinha furtou o gado de seu irmão Apolo.


O roubo do gado de Apolo
Sentindo fome, saiu para espiar os arredores, já imaginando astúcias. O sol se punha, e Hermes se dirigiu às montanhas de Piera, onde pastava o gado de Apolo, seu irmão mais velho. Do rebanho, ele tirou cinqüenta vacas, e as conduziu, tangendo-as com um bastão, por caminhos labirínticos para evitar ser seguido através dos rastros. Também amarrou-as todas e fez com que andassem de marcha-a-ré, com o mesmo objetivo, e para si confeccionou um par de sandálias mágicas com folhas de tamareira e mirtilo, para que pudesse deslizar pelo caminho e prosseguir com rapidez, sem deixar pegadas reconhecíveis.


O Mestre dos Ladrões
Voltou em seguida para a gruta, passou pelo portão através do buraco da fechadura sob a forma de fumaça ou névoa, e deitou no berço como se nada acontecera. Sua mãe, porém, que suspeitava do filho, repreendeu-o, dizendo que, ao concebê-lo, Zeus havia criado um problema tanto para os deuses como para os homens. Hermes, entretanto, replicou vigorosamente, afirmando sem temor sua origem divina e reivindicando um tratamento igual ao que recebia seu meio-irmão Apolo. Se Zeus o negasse, ele se transformaria num príncipe dos ladrões. Se Apolo o perseguisse, destruiria seu santuário e tomaria seu ouro.  Ainda assim o deus da previdência e adivinhação partiu direto para a cova onde Hermes nascera, e o encontrou fingindo dormir, em seu berço. Perscrutou o lugar com sua luz, mas não encontrou o gado, e exigiu do bebê que revelasse onde o escondera, sob severas ameaças. Hermes negou qualquer conhecimento do caso, e alegando sua pouca idade, disse que jamais poderia ter sido o autor do furto, além de acrescentar que seria um tanto ridículo da parte do todo poderoso Apolo ser furtado e enganado por um bebê recém-nascido. Apolo não se deixou iludir, e entre aborrecido e divertido, chamando-o de enganador e ardiloso, previu que em muitas noites Hermes penetraria nas casas dos homens e silenciosamente os privaria de seus bens, e tomaria o gado dos pobres pastores. Assim ganharia fama como Mestre dos Ladrões.
Trocando favores 
Hermes tomou da lira e começou a cantar toda a teogonia (poema que narra o nascimento dos deuses gregos), celebrando Mnemosina, deusa da memória, acima de todos os deuses. Encantado, Apolo disse que sua canção valia bem cinquenta vacas, parecia superior a tudo que ele mesmo, como deus da música, conhecia, e que a disputa poderia encerrar em paz. E jurou fazer do irmão um líder entre os imortais, prometendo conceder-lhe muitos dons. Hermes, louvando o irmão, disse que por sua vez lhe dava a ciência desse novo canto e da execução da lira, recomendando que os praticasse com dignidade.
Zeus concede mais benezes
Zeus confirmou os dons de Apolo sobre Hermes, e acrescentou outros: atribuiu-lhe o comando das aves divinatórias, dos leões, dos ursos, dos cães e de todos os rebanhos da Terra, além de fazê-lo mensageiro junto ao Hades, função de grande prestígio.

Os reinos de Hermes
Hermes, esse deus ladrão, mentiroso, ardiloso e brincalhão reina em todo espaço onde imperam trocas, principalmente as trocas que envolvem dinheiro e mais especificamente as que lidam com vocabulários específicos, difíceis de decifrar, impossíveis para os "não-iniciados", como o nosso "economês" dos jornais!

Linguagens secretas
A língua dos economistas, como a língua dos médicos e a língua dos acadêmicos é um instrumento de poder! É uma linguagem cifrada, difícil, "hermética"! É através de seu caráter obscuro e de difícil tradução que ela requer o papel do "tradutor", palavra que tem a mesma raiz da palavra "traidor" (a similaridade ainda pode ser observada nas palavras "tradutore" e "traditore", respectivamente 'tradutor' e 'traidor' em italiano, por exemplo). Hermes reina no campo da tecnologia, do Mercado financeiro e têm expandido seus domínios! 

Estruturas da psique
Mitos são narrativas através das quais podemos perceber o funcionamento das estruturas inerentes ao pensamento humano. Através desses relatos de tempos imemoriais podemos ver a interação de arquétipos (tipos primitivos de filtros perceptuais entre nossa consciência e nosso inconsciente) ou o funcionamento de complexos (sistemas integrados e abertos de dados afetivos, cognitivos e somáticos que são ativados por gatilhos específicos) em nossas mentes.

O mito de Hermes nos traz uma faceta possível para o pensamento humano: a razão econômica pura, a mentalidade centrada no lucro acima de qualquer coisa. O complexo psicológico do lucro, da competitividade intelectual e do ganho. O que chamamos atualmente de pensamento de Mercado.

Onde está a Farsa?
Digo que estamos submersos na "Farsa de Hermes" porque estamos submersos numa sociedade que nos vende a ideia constante de que a felicidade é um bem ou uma experiência consumível, pela qual há um valor específico que pode ser somado e gasto resolvendo para sempre essa questão. Uma sociedade em que haja o que houver, estejamos onde estivermos, ocorra o que for conosco, teremos sempre a doce ilusão de que podemos transformar qualquer fato isolado (principalmente os fatos trágicos) em produtos cercados por uma constelação de subprodutos através dos quais venderemos nossa tragédia como uma história de superação do espírito humano.

É tudo fumaça e espelhos!
Sendo mais específico: Vivemos numa sociedade tão espetacularizada pela ilusão de lucro fácil que ainda que me caia o prédio, eu perca todos os bens, uma perna e metade dos meus parentes, ainda assim serei incentivado a participar de um reality show, escrever um livro de memórias - que será um best seller por ao menos duas semanas! -, participar de seis ou sete programas de entrevistas e enriquecer às custas da minha tragédia pessoal!

É a lógica da razão econômica a todo custo, a razão do faturamento, do crescimento desordenado e sem bases, afinal Hermes tem asas nos pés! Ele não tem estrutura nenhuma! Ele não tem raízes na matéria, ele é um eterno "flaneur", passeando por dados e informações e vídeos no youtube e postagens aleatórias e superficiais no facebook.

Ele não cria, ele copia e cola, compartilha, curte, comenta e homogeniza o conhecimento, reduz a criatividade a um trabalho de cópia seguido de um esforço enorme para esconder suas fontes. É o deus do "jeitinho", do "quanto é que eu levo nisso?", do "o que o Mercado está pedindo agora?", do "para onde o vento sopra hoje?", do movimento sem destino, da educação sem aprendizado, do dinheiro virtual, da imagem, da fumaça e dos espelhos.

Hermes precisa que você precise
O pior fantasma para uma sociedade centrada no ideal de Hermes do lucro acima de tudo é o sujeito que busca a própria autonomia, o sujeito que consome o necessário e não o supérfluo, o sujeito que cria e que consegue ter condições psicológicas e íntimas de criticar construtivamente as criações desse próprio pensamento do lucro acima de tudo.

Hermes precisa que você precise e precise, principalmente, do impreciso! Quando menos definido melhor, porque nesse caso qualquer coisa serve! Observe bem e não se engane, porque "qualquer coisa" é o que você terá, nesse caso! Uma avalanche monstruosa de "quaisquer coisas" eletrônicas, cheirosas, cortadas, do tecido, da marca, da cor, da loja, do nome, da sigla etc. Mas é necessário essencialmente que você precise, de algo impreciso, e sempre!

A alma do homem sob o Hermetismo de mercado
Desconectado do incômodo que a materialidade é para Hermes - ele nunca se deu bem com sua mãe, princípio feminino, visceral e material de sua existência, mas sempre se deu maravilhosamente bem com seu pai, princípio etéreo e intelectual de seu ser - o homem não pode mais vivenciar seu luto, sua depressão, sua perda, sua dor. Pensemos em direções: Nada do que coloque o homem "para baixo" ou "para dentro" é possível no pensamento desse Hermes superficial da nossa sociedade contemporânea, só o que o coloque "para cima" e "para fora"!

E vemos o espetáculo cotidiano da quimicalização farmacêutica dos nossos humores. Não se aceita a tristeza, o luto, a dor nem o digerir natural dos sentimentos humanos. O ideal e o necessário é estar atento, ser rápido, frio, calculista, inteligente e desprovido de profundidade emocional ou existencial. O maior ideal da sociedade hermética é ser um psicopata ou estar submerso num oceano de ritalina.

A grande esquizofrenia
Observemos como, submersos que estamos nessa lógica hermética do discurso, já transformamos as expressões: "para baixo" significa depressivo, triste, enfadonho, chato, enquanto "para cima" se torna sinônimo de alegre, extasiante, divertido, interessante etc. "Para trás" significa retrógrado, ultrapassado, antigo, eliminado, já "para frente", significa aventureiro, destemido, investidor, animado. Interessante, não?

Quando nos perguntam quem somos, como no início do texto, a forma como nos posicionamos perante o mundo já é um dado pelo qual seremos identificados, mas convenientemente esquecemos que o julgamento sempre fala mais do juiz que do julgado.

Acreditando nessas divisões e nos significados fechados delas, ignorando inclusive a faceta profunda do próprio Hermes enquanto deus que visita o submundo e leva nossa alma (sem deixar, para o bem ou para o mal, que levemos nenhuma de nossas riquezas), é também corrermos o risco de rompermos o vínculo entre matéria e existência, entre nosso corpo, seus processos e velocidades íntimos e quem nós somos. É aí que temos a grande esquizofrenia de nossa época, a ideia de que pães nascem em sacos nas prateleiras, leites vêm em caixas e celulares nascem nas vitrines das lojas, da mesma forma como a felicidade embrulhada e perene é possível a todos, menos a nós, que estamos sozinhos depressivos quando todo o resto da humanidade está numa mega festa de arromba para a qual nós fomos os únicos que não foram convidados.

O ponto cego
É aí que geramos a ansiedade, é desse caldeirão que nasce a insegurança, a incerteza, a desorientação e é para sanar o incontrolável turbilhão de desespero desse estado que estão à venda todas as formas imagináveis de produtos, serviços, remédios, eventos e "experiências" de consumo. Cada um dos quais foi projetado para criar um looping infinito de novos produtos, serviços, remédios, eventos e "experiências" de consumo contíguas e infinitas. Do remédio projetado para criar efeitos colaterais que venderão novos remédios às políticas econômicas ditadas pelo FMI que desencadearão um novo pedido de ajuda ao próprio FMI passando pela obsolescência programada de eletrodomésticos e aos modismos da auto-ajuda gerencial de mercado. É aí, no turbilhão das ofertas de ilusão, que está a Farsa de Hermes.


Texto de Renato Kress

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