terça-feira, 1 de abril de 2014

O Tabu do Desespero*

Tambores cardíacos
Quando nos encaminhamos para a guerra cotidiana ouvimos, ao longe, o rufar ritmado dos tambores. eles estão batendo, em um coro ensurdecedor, nos corações dentro dos peitos recobertos por ternos e carrocerias de carros. Cada batida ecoando entre os vales que nos separam uns dos outros cadencia o compasso dos passos que crescem e anunciam, com o aumento do volume, a chegada da horda de inimigos, da falange de tecido, discursos, interesses, aço e vidro e movimento que cortará o ar em nossa direção. Era assim no milênio passado e nos milênios antes deles e ainda é assim, hoje.

Relute em criar, insista em reproduzir
Vivemos numa sociedade em que o único encorajamento verdadeiro e constante é o encorajamento da covardia. "Seja covarde! Relute! Você está nessa sozinho e o seu vizinho já comprou outro carro novo! E o seu colega viajou para a Europa, de novo!" é o que as propagandas nos vendem: fórmulas prontas do sucesso que nos livrariam do terrível ato de pensar por nós mesmos e nos dão, em troca, a cômoda possibilidade de culpar o outro pelo nosso fracasso. A culpa é do "sistema", da moda de gerenciamento de emoções "X", "Y" ou "Z" vendida pelos livros de autogestão das nossas carências e necessidades. Que cômodo, não?

Táticas do fracasso anunciado
Em geral esses livros tendem a apresentar uma leitura cômoda e limitada do mundo e um catálogo numerado de formas de lidarmos com esse mesmo mundo limitado a essa leitura. O problema é que o mundo costuma dar uma segunda-feira para cada domingo nosso, e a cada vez que acreditamos que compreendemos a "fórmula final" para entendê-lo, ele inclui na equação uma nova variável.

Dentro da nossa cultura de Mercado essas leituras do mundo são táticas do fracasso anunciado. Necessariamente devem ser. Caso contrário, como eles venderiam a nova fórmula, do novo sucesso, com as correções feitas sobre os erros da antiga fórmula e com alguns probleminhas internos criados para serem resolvidos pela fórmula que virá depois dela? Interessante, não é? É como funciona o Windows por exemplo.

Desespero, desorientação e consumo
O que dizer então dos comerciais? Da ideia de que estão todos se divertindo em uma festa secreta para a qual você não foi convidado? Até que ponto é preciso que você se sinta sozinho, carente, isolado? Desculpe a sinceridade, mas até certo ponto é preciso que você se sinta desesperado?!

Desespero talvez seja a palavra menos dita e mais vivenciada nos tempos atuais. Esperar nada, lutar por tudo, gastar toda energia possível no máximo de atividades simultâneas, confiando em ninguém e competindo com todos. Esse é o espírito atual da sociedade ocidental.

Travesseiro de batalha
Quando acorda, pela manhã, Inácio precisa de um despertador que toque dentro do banheiro, para que ele tenha que levantar e ir até lá desligar. Amanda precisa de uma dose cavalar de cafeína para começar a "batalha do cotidiano". Se fosse do lado da cama talvez o despertador de Inácio não fosse eficaz, apenas um expresso e talvez o edredom venceria o dia produtivo de Amanda. Mais forte que quaisquer metáforas e leituras que temos da realidade cotidiana da guerra com o travesseiro, talvez seja mesmo esse profundo desespero. Essa consciência dura de que não há o que esperar, de que é preciso ser forte, de que é preciso salvar a si mesmo do lodaçal dos que não foram dignos, trabalhadores, pró-ativos, competitivos, agressivos, individualistas, egoístas e egocêntricos.

Zonas de Ação e Conforto
Pensar sobre a qualidade desses adjetivos da moda de gerenciamento dos nossos desejos e impulsos contemporâneos também é interessante. A vivência do conforto como culpa, por exemplo, expressa na regra do trabalho contemporânea que nos diz que devemos sempre estar efetuando o eterno gerúndio: "saindo" de uma pretensa "zona de conforto" e "entrando" em uma dolorosa porém recompensadora "zona de ação" é algo a se pensar com mais profundidade. Mas pensar quase nunca é compreendido como uma "ação", e aí é que corremos o sério risco de, na ânsia de parecermos estar sempre "em movimento" numa sociedade líquida (Z.Bauman), deixarmos de nos ater ao quão desconfortável na realidade está se tornando, para cada um de nós, o ato de pensar efetiva e seriamente, de pensar sobre a finalidade das nossas ações na "zona de ação". A velocidade embota o raciocínio, a pressa turva todos os referenciais.

Tem se tornado cada vez mais confortável agir sem pensar, reproduzir sem raciocinar. O que torna mais importante ainda a questão: Quando vamos sair dessa zona de conforto da ação? Quando vamos encarar o desconfortável inconveniente de pensar por nós mesmos?

Desespero e desorientação
A quem serve a desorientação? A quem serve o desespero? Desesperados agem por impulso, desorientados necessitam doentiamente de um líder. Desesperados, no impulso, consomem pequenos "drops" de esperanças em mercadorias, modas, viagens, leituras etc. Desorientados clamam por lideranças fortes, principalmente na política. Sabemos onde cada uma dessas questões vão desembocar: o desespero constante alimenta a hiperprodução de um mercado doente e nada sustentável, a desorientação alimenta um vácuo político que pode ser preenchido por todo tipo de autoritarismo e totalitarismo insano. Por isso mesmo que há todo um sedutor apelo à ação, ela, ultimamente, tem nos livrado do desagradável incômodo de repensar esses mecanismos. Que interessante, não é?

Todos esses resultados são frutos das nossas sementes cotidianas de hesitação, desse contante atraso em assumir a nossa parcela de controle sobre nossa própria autonomia.

Estratégia e sanidade
Alguns de nós temos planos. Temos uma meta traçada, um plano maior - mesmo que não tão maior -, a partir da qual balizamos nossas atitudes ao longo dos choques diários de nossas espadas e escudos em palavras e atos combatendo no campo diário do trabalho. Esses poucos conseguem criar um sentido, um centro mais ou menos coeso que proteja a sanidade contra os choques psicológicos, afetivos e existenciais das lâminas e martelos que vêm de fora na forma de críticas, de tentativas de ridicularização, de humilhação, de agressão e, também, de dentro, nas nossas fugas, receios, nos nossos desvios de atenção, foco e energia.

A meta nunca poderá ser "manter a sanidade", mas qualquer boa meta sempre servirá para isso. Quem tem um propósito suporta melhor as adversidades. Quem tem um foco caminha seguro entre a chuva de flechas e marretadas do dia a dia nos dizendo que temos de comprar o celular tal, ver este ou aquele filme, viajar para tal ou qual lugar, ler tais livros, aprender este ou aquele idioma, técnica etc. O problema nunca estará no celular, no filme, na viagem ou no idioma, mas no centro da decisão ter vindo de dentro ou de fora de nós. De onde vem a decisão?

Qual foi a última vez que você reviu seus propósitos? O que você diria a si mesmo se, virando a esquina, desse de frente consigo mesmo aos dez anos de idade?

Texto por: Renato Kress

(*) a primeira versão desse texto foi publicada no meu blog www.areteetime.blogspot.com em 31/07/2013

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