terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Linguagem e Transformação I

"Palavras! Simples palavras! Mas como elas eram terríveis! Como eram claras, expressivas e cruéis! Não se podia escapar delas. Entretanto, que magia sutil traziam em si! Pareciam capazes de conferir plasticidade a coisas disformes e de ter uma música doce como a do violino ou do alaúde. Meras palavras! Haveria algo mais real do que palavras?" - Oscar Wilde, em O Retrato de Dorian Gray.


Eram tantas palavras possíveis para começar o assunto e Raquel escolheu justamente aquela que magoaria Patrícia. Raquel conhece a amiga e estava muito irritada com a atitude dela. Foi através de uma palavra certa, cuja importância só as duas sabiam, que a amiga sangrou intimamente a outra, dando a dimensão que ela queria dar para o acontecimento. Da mesma maneira Cássio deu um tapa no ombro do amigo, soltou um sonoro palavrão, reclamou do atraso e recebeu um belo sorriso como resposta de Daniel. O significado das palavras depende, também, do contexto. Pode ser aprendido ou ressignificado através de experiências, convivência, diferentes culturas ou idiomas. Só uma coisa é impossível: Não comunicar. O silêncio, muitas vezes, é a mais eloquente das respostas.

Linguagem e relacionamento
Precisamos nos comunicar para sobreviver. Expressar nosso mundo interno, nossas representações, humores e posicionamentos é vital! É cada vez mais comum que, em busca de proteção num mundo compreendido culturalmente como "hostil", vivamos separados uns dos outros procurando grupos e indivíduos que reforcem nossas expectativas, fechando nosso cotidiano a um contato mais saudável com a riqueza da variabilidade humana. Essa atitude nos leva a reforçar compreensões que tenderão a crescer sobre a forma de preconceitos, nos impedindo de compreender realidades mais vastas do as que já temos como "certas". E aí paramos de criar novas representações e começamos a reforçar as antigas. É por aí que nasce o preconceito, a intolerância e, muitas vezes, o ódio.

Profecia auto-realizadora
Tanto nossas metas e objetivos de vida quanto a qualidade da vida que levamos são fortemente influenciadas pela forma como nos expressamos. Afinal de contas, nosso mundo interior - nossa representação interna da realidade externa - é invisível, inaudível e intangível para as pessoas ao nosso redor e, ainda assim, é através dele que pensamos, sentimos e agimos. A questão é estarmos atentos para que fique claro para o outro a maneira como estamos vendo ou sentindo o que queremos expressar.

Mesa de bar e política internacional
Essa semana, no sábado à noite, tive uma experiência interessante: Estava numa mesa de bar com dois amigos e ambos estavam discutindo sobre política, especificamente sobre o que era um "partido de direita" e o que era um "partido de esquerda". Um, ativista e frequentador de grupos de estudos acadêmicos, focava na teoria (no caso Marx-esquerda versus Adam Smith-direita) e outro, funcionário da ONU, focava na prática (no caso procurando momentos históricos em que governos oficialmente se declararam "de direita" ou "de esquerda" ou que vieram de partidos que se assumam assim). O que eles conseguiram, no final das contas, foi colocar em cheque as certezas que ambos tinham a respeito do assunto. O que é perfeitamente natural, porque esperamos que nossas certezas sejam confirmadas pelos acontecimentos na maior parte das vezes sem percebermos que a nossa leitura dos acontecimentos é só uma leitura, não a única possível. O mundo é sempre mais vasto. É o que em teoria dos sistemas chamamos de "sistema complexo aberto". Não paramos de colocar variáveis nesses sistemas, principalmente porque o tempo - uma das mais importantes variáveis - continua passando.

Sopa de letrinhas
A minha representação do que é "real" naturalmente engloba menos sabores do que a representação de Elia, meu amigo chef de cozinha, mas isso não faz da descrição detalhada que ele é capaz de dar para um novo tempero menos "real" do que a minha. São apenas descrições diferentes, feitas com "aparelhos medidores" diferentes. O mesmo se aplica à minha amiga pintora e à sua escala de cores, ou aos meus amigos na mesa de bar no sábado. Com certeza minha amiga pintora consegue diferenciar tons que são "inexistentes" ou "imperceptíveis" para mim. O que não quer dizer que não possamos ser amigos e conversar, justamente, sobre sabores, política e cores!

Compartilhar experiências
A linguagem é a faculdade humana de relacionar-se ou comunicar-se socialmente, seja para finalidades instrumentais (práticas), expressivas ou cognitivas (de pensamento, discursivas) por meio de sistemas de signos vocais ou verbai (signos linguísticos) e ainda gestuais, lógico-matemáticos, visuais ou sonoro-musicais (signos não linguísticos).

Comunicação, compreensão, transmissão
A linguagem é muito vasta e, quanto mais vasto é o nosso conhecimento da linguagem, mais amplo e diversificado fica o nosso "mapa interno" da realidade, mais "cores", "variações" e "sabores" podemos representar internamente. Em quê isso nos ajuda na vida? Ora, é justamente através desses "mapas" que interagimos com o mundo ao nosso redor. É usando esse filtro perceptivo criado pelo histórico acumulado das nossas experiências linguísticas ou comunicativas que vamos definindo o que é "real" e o que "não é".

Quanto mais formas de explicar uma mesma situação, melhores serão as minhas chances de ser entendido por um número maior de pessoas!

Pensando assim, o quão importante deve ser, para a construção saudável das nossas representações de mundo, aprender uma nova língua? Ou conhecer uma nova cultura?

Desvendando códigos, ampliando percepções
Às vezes uma pequena viagem, dentro do nosso país ou mesmo uma menor, para o interior do nosso estado, pode nos dar uma nova leitura, um novo significado para uma palavra conhecida. A linguagem é compartilhada, mas o significado atribuído a uma palavra pode ser criado individualmente, ou em pequenos grupos, e pode não ser compartilhado. Existem códigos dentro de uma família, entre amigos ou colegas de trabalho que só os que pertencem ao grupo conseguem decodificar.

Palavras em processo
Por isso também, no processo de coaching, precisamos esclarecer qual o significado de uma palavra reincidente para o nosso cliente. O fato de ela ser reincidente já nos sinaliza que, para o cliente, ela tem uma importância específica. A não ser em casos de "tique", ninguém repete um determinado termo sem que ele tenha um significado especial.

Redes e filtros do discurso
Se o cliente sempre traz o termo "diversão",
o que isso diz sobre a representação de
mundo dele? 
É preciso pensar que a palavra é como uma linha trançando uma rede, a rede do discurso que será, também, o filtro através do qual o cliente está percebendo a realidade ao seu redor. Se a palavra "diversão" - e o verbo "divertir" - estão vindo com grande frequência pode significar que a vida, no geral, está tendo um registro de leveza, mas também que algumas coisas podem não estar sendo levadas "tão a sério" como deveriam. Poderíamos observar o oposto para a palavra "disciplina". Quaisquer termos repetidos constantemente pelo discurso do cliente tem forte tendência de ser um "crivo" interpretativo através do qual o cliente enxerga a realidade, e reage a ela!

Erros de interpretação
Quando confundimos as palavras com a experiência podemos cair em várias possibilidades de erros. Entre eles:

# Sempre traduzimos nossa experiência para algum tipo de linguagem - verbal ou não-verbal - e é comum confundirmos a linguagem com a experiência. Nesse caso podemos acreditar que nossa experiência é construída da mesma maneira que a linguagem. Dessa forma permitimos que a linguagem nos limite a expressão de novas experiências. É interessante, num processo de coaching, incentivar o cliente a criar palavras ou conceitos (através de neologismos) para descrever um estado emocional interno onde ele ainda não esteve. Grandes descobertas advém desse exercício simples!

# Podemos também supor erradamente que outras pessoas compartilham das nossas suposições e assim omitirmos partes vitais da nossa mensagem. Isso pode confundir às pessoas, ainda que não tenhamos essa intenção. Nesse caso, em um processo de coaching, devemos procurar esclarecer o significado comum de um conceito, ideia ou palavra, perguntando ao nosso cliente "o que você entende por 'X'?" ou "O que significa 'X' para você?".

# Muitas vezes podemos entender mal aos outros porque preenchemos as lacunas entre suas palavras com base no nosso mapa da realidade, em vez de tomarmos o cuidado e o carinho de compreender e desvendar o mapa deles. Isso deriva do fato de que é comum pensarmos, erradamente, que por compartilharmos a mesma linguagem necessariamente compartilhamos a mesma experiência. Para esse caso, mais uma vez, é útil termos a humildade de assumirmos que a nossa perspectiva da realidade é limitada (como a de todos os seres humanos no planeta) e perguntarmos "qual a ligação entre 'x' e 'y' para você?", "você me disse que depois de 'x' naturalmente vem 'y', ok, mas é sempre assim? Nunca aconteceu diferente? É proibido ou impossível que outra coisa aconteça?", "você está me contando isso porque quer me mostrar especificamente o quê?".

Num processo de coaching, como na maiêutica de Sócrates, a pergunta certa pode desencadear todo um novo universo de possibilidades para o cliente! E é essa riqueza que buscamos!

Linguagem e pensamento
Ao investigar a evolução da linguagem e do pensamento no âmbito dos indivíduos, existem indícios acentuados de que a capacidade intelectual está associada ao domínio da linguagem verbal, ou genericamente, ao que os linguistas chamam de "funções semióticas".

Basicamente dizemos que a língua serve de suporte para o pensamento. Ou seja: quanto mais palavras e usos para elas você conhecer, melhor e mais bem estruturado será o seu pensamento, com mais clareza você verá o mundo (ainda que, em sua totalidade, o que chamamos de "real" ou "realidade" esteja sempre aberto a novas leituras)! O que especificamente você ganha com isso? Clareza, objetividade, foco! E uma melhora nos seus relacionamentos interpessoal - com outras pessoas - e intrapessoal - consigo mesmo!

Auto percepção e motivação
Muitas vezes compreender a nós mesmos não é uma das mais simples tarefas do mundo, mas com certeza é uma das mais prazerosas e, também, base para várias outras grandes jornadas! É a partir desse trabalhoso "O quê" respondido com um "conhecer melhor nossa representação do mundo", que chegaremos mais fácil e diretamente aos nossos "por quês", aqueles que nos dirão o quanto vale investir tempo, dinheiro ou se sacrificar por uma meta.

Plantando a semente
Liev Vigótski, cientista bielo-russo pioneiro na investigação do desenvolvimento intelectual infantil, afirmava: "O desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, isto é, pelos instrumentos linguísticos do pensamento e pela experiência sociocultural da criança. (...) A capacidade intelectual da criança depende de seu domínio dos meios sociais do pensamento, isto é, da linguagem."

A riqueza interior cresce de dentro para fora, a partir de novas posturas que adotamos em relação às nossas próprias percepções do mundo. Então, por exemplo, quanto maior for o seu vocabulário, maior será a sua capacidade de diferenciação, interpretação e expressão de experiências e mais colorida se tornará a sua leitura da realidade!


Então, o quê você está esperando para pegar aquele livro encostado na prateleira? Para começar aquele curso de inglês, francês, espanhol, alemão? Ou para esclarecer com seus amigos, clientes e familiares o que exatamente eles querem dizer quando repetem aquela palavra onde toda conversa emperra? Vamos nessa ampliar a extensão das praias dos nossos neurônios?

Artigo por Renato Kress

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