terça-feira, 18 de março de 2014

Responsabilidade

Qual é a maior autoridade no mundo sobre você? Tudo bem, a resposta provavelmente te pareceu óbvia demais, certo? Deveria. No entanto o quão comum é, em nossa sociedade, vermos a projeção da responsabilidade das nossas escolhas, aprendizados e atitudes sobre modelos externos? É o "case" de sucesso que me dá a orientação sobre o "modelo" de ação a seguir, ou o comercial, os "estudos" e "pesquisas" (cujas fontes obscuras muitas vezes não procuramos diretamente) que me dizem que um alto percentual de pessoas age assim e, é claro, isso me traz o conforto, o alívio de pertencer a uma maioria, ou a uma ideia tranquilizadora de maioria. Mas espera aí, quem é a maior autoridade no mundo sobre os seus problemas?

Mitos e padrões
Ser responsável é "responder" pelos próprios atos, é co-responder. No Jardim do Éden foi um Adão imaturo que, ao descobrir que comera o fruto proibido, colocou a responsabilidade em Eva. Da mesma maneira como uma Eva imatura colocou a culpa na serpente. Observando mais de perto nosso mundo cotidiano onde cada vez menos pessoas se responsabiliza por seus erros, podemos mesmo reclamar por não estarmos no "Paraíso"?

O que temos nos tornado?
Aristóteles foi um dos primeiros filósofos a observar que nos tornamos as pessoas que somos devido às nossas próprias decisões. A vida nos traz situações e contextos que nos levam a tomar decisões, essas escolhas nos levam a determinadas respostas externas às quais, com o tempo, nos acostumamos e, a partir daí, esse conforto íntimo da repetição do conhecido se torna um padrão de resposta para nossas próximas escolhas. Somos a sucessão de nossas decisões.

Então, o que será que ocorre conosco quando deixamos que essas decisões sejam pautadas pelo que "a maioria" decide? O que nos tornamos à medida em que temos "especialistas" para nos dizer o que pensar sobre cada decisão nossa? Sobre os diferentes lados em uma guerra, sobre as diferenças entre sabões em pó, sobre como nos vestir, qual celular comprar, quais opiniões sustentar, quais cursos fazer, em quais carreiras investir, como criar e alimentar nossos filhos?

"As pessoas esqueceram o mais elevado dos deveres: aquele que se tem para consigo mesmo. Claro que são caridosas, alimentam os famintos e vestem os miseráveis. Mas suas próprias almas têm fome e frio." - palavras de Lorde Henry em O Retrato de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde.
Existir é preciso
Modelos de sucesso, fórmulas
prontas para a transferência
de responsabilidade.
A filósofa inglesa Mary Midgley diz que "o ponto central, de verdadeira excelência do existencialismo é a aceitação da responsabilidade de ser como nos fizemos, a recusa de dar falsas desculpas". Talvez por isso seja tão comum, na nossa sociedade acelerada e fluida, onde temos de fazer várias escolhas e tomar diversas decisões por dia, projetarmos nossa responsabilidade em modelos externos. Essa atitude é confortável por dois motivos:

Primeiro - que é o que menos percebemos e mais usamos - é que podemos culpar outra pessoa ou outro modelo quando tudo der errado! Que prático, não é mesmo?

Segundo é que acelera o processo decisório, afinal, se todos estão seguindo o "case" de sucesso X ou Y eu não preciso me preocupar com os detalhes, "alguém" já se preocupou e é um "modelo que (me disseram ou eu ouvi falar que) funciona" afinal de contas, certo?

"Uma multidão em seu próprio conceito é o falso, pelo fato de deixar o indivíduo completamente impune e irresponsável ou, no mínimo, enfraquecer seu senso de responsabilidade, reduzindo-o a uma fração." - Sören Kierkegaard

Coach e responsabilidade
O processo do coaching é um processo de progressiva construção, em parceria, de um forte e maduro senso de responsabilidade sobre as próprias escolhas e diretrizes. Infelizmente um processo sério e intenso de coaching é tão difícil quanto necessário em uma sociedade como a nossa, em que progressivamente vamos nos afastando da criação de nós mesmos em direção a uma reprodução do mesmo, da cópia impensada e rápida do modelo da moda.

Um processo de coaching ético engloba necessariamente o ganho progressivo de autonomia e essa autonomia só aparece quando nos propomos a sermos capazes de responder por nossas ações, direções e escolhas tendo como referencial inicial a nós mesmos. Nenhum modelo, prática ou técnica usado ao longo do processo de coaching toma a decisão pelo coachee (cliente), pelo contrário, eles instigam o cliente a perceber melhor tanto as escolhas possíveis quanto a necessidade de se fazer uma escolha autônoma e pessoal. Afinal de contas, quem é mesmo o maior "expert" na vida do cliente senão o próprio?

Por isso o coaching é um processo de progressivo aumento da nossa responsabilidade. Sem ela nenhuma de nossas conquistas terá, para nós mesmos, intimamente, aquele delicioso e inigualável sabor da conquista com mérito.

Responsabilidade e legado
A responsabilidade constitui também uma noção ecológica, uma noção de que não estamos sozinhos neste mundo e de que somos co-criadores do futuro que deixaremos aos nossos filhos e ao planeta. Todos nós, de alguma forma, conhecemos a sensação de termos certos deveres para com quem depende diretamente de nós e, ainda assim, muitas vezes deixamos de encarar clara e diretamente o fato de que, em última instância, nossos planos, projetos e metas são filhos nossos, sobre os quais cabe inteiramente a nós o futuro ou a morte.

Coach Quíron e o Storytelling
O método Coach Quíron engloba, entre outras áreas do conhecimento, o storytelling, ou a "contação de histórias", que é uma forma aberta de deixar que os nossos clientes criem suas próprias conclusões e ampliem o universo interpretativo sobre determinados assuntos. Por isso, ao final de alguns artigos, transcreveremos algumas histórias, contos, lendas, mitos, fábulas ou até mesmo poemas sobre o assunto tratado. Para que a interpretação dos nossos leitores possa ser o mais própria e pessoal possível.

Espero sinceramente que você aprecie a nossa seleção a seguir:

Os Ombros Suportam o Mundopor Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não saber sofrer.
E nada espera de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Que espécie árida de realidade poderosamente criativa é a responsabilidade própria, não é mesmo?
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Meu Reino por um Cavalo!
Adaptado do original por James Baldwin

O Rei Ricardo III estava se preparando para a maior batalha de sua vida. Um exército liderado por Henrique, Conde de Richmond, marchava contra o seu. A disputa determinaria o novo monarca da Inglaterra.

Na manhã da batalha Ricardo mandou um cavalariço para verificar se seu cavalo preferido estava pronto.
- Ferrem-no logo - disse ao ferreiro. - O rei quer seguir em sua montaria à frente dos soldados.

- Terás de esperar - gritou o cavalariço, impacientando-se. - Os inimigos do rei estão avançando neste exato momento e precisamos ir ao seu encontro no campo. Faze o que puderes agora com o material de que dispões.

O ferreiro, então, voltou todos os esforços para aquela empreitada. A partir de uma barra de ferro providenciou quatro ferraduras. Malhou-as o quanto pôde para dar-lhes formas adequadas. Começou a pregá-las nas patas do cavalo. Mas depois de colocar as três primeiras, descobriu que faltavam-lhe alguns pregos para a quarta.

- Preciso de mais um ou dois pregos - disse ele, - e vai levar tempo para confeccioná-los no malho.

- Eu disse que não posso esperar - falou, impacientemente, o cavalariço. - Já se ouvem as trombetas. Não podes usar o material que tens?

- Posso colocar a ferradura, mas não ficará tão firme quanto as outras.

- Ela cairá? - perguntou o cavalariço.

- Provavelmente não - retrucou o ferreiro - mas não posso garantir.

- Bem, usa os pregos que tens - gritou o cavalariço - E anda logo, senão o rei Ricardo se zangará com nós dois.

Os exércitos se confrontaram e Ricardo participava ativamente, no coração da batalha. Tocava a montaria, cruzando o campo de um lado para o outro, instigando os homens e combatendo os inimigos. "Avante! Avante!", bradava ele, incitando os soldados contra as linhas de Henrique.

Lá longe, na retaguarda do campo, avistou alguns de seus homens batendo em retirada. Se os outros os vissem, também iriam fugir da batalha. Então Ricardo meteu as esporas no cavalo e partiu a galope na direção da linha desfeita, conclamando os soldados de volta à luta.

Mal cobrira metade da distância quando o cavalo perdeu uma das ferraduras. O animal perdeu o equilíbrio e caiu, e Ricardo foi jogado ao chão.

Antes que o rei pudesse agarrar de novo as rédeas, o cavalo assustado levantou-se e saiu em disparada. Ricardo olhou em torno de si. Viu seus homens dando meia volta e fugindo, e os soldados de Henrique fechando o cerco ao redor. Brandiu a espada no ar e gritou: Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!

Mas não havia nenhum por perto. Seu exército estava destroçado e os soldados ocupavam-se em salvar a própria pele. Logo depois as tropas de Henrique dominavam Ricardo, encerrando a batalha.

E desde então as pessoas dizem:
Por falta de um prego, perdeu-se a ferradura.
Por falta de uma ferradura, perdeu-se um cavalo.
Por falta de um cavalo, perdeu-se uma batalha.
Por falta de uma batalha, perdeu-se um reino.
e tudo isso por causa de um prego numa ferradura.

A que ponto podemos chegar na transferência de responsabilidades?
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A Espada de Dâmocles

Era uma vez um rei chamado Dionísio*, monarca de Siracusa, a cidade mais rica da Sicília, na Itália. Vivia num palácio cheio de requintes e de coisas bonitas, atendido por criadagem sempre disposta a fazer-lhe as vontades.

Naturalmente, por ser rico e poderoso, muitos siracusanos invejavam-lhe a sorte. Dâmocles estava entre eles. Era um dos melhores amigos de Dionísio e dizia-lhe frequentemente:

- Que sorte a sua! Você tem tudo o que se pode desejar! Só pode ser o homem mais feliz do mundo!

Dionisio foi ficando cansado de ouvir esse tipo de conversa.

- Ora essa! Você acha mesmo que eu sou mais feliz do que todo mundo?

O amigo respondeu:

- Mas é claro! Olhe só os seus tesouros e todo o seu poder! Você não tem absolutamente nada com o que se preocupar! Poderia sua vida ser melhor do que isso?

- Talvez você queira trocar de lugar comigo. - disse Dionísio.

- Ora, eu nem sonharia com uma coisa dessas! Mas se eu pudesse ter sua riqueza e desfrutar de todos esses prazeres por um dia apenas, não desejaria felicidade maior.

- Pois bem! Troque de lugar comigo por um dia apenas e desfrute disso tudo.

E então, no dia seguinte, Dâmocles foi levado ao palácio por um séquito real e todos os criados recebiam instruções de tratá-lo como amo e senhor. Vestiram-no com mantos reais e puseram-lhe na cabeça uma coroa de ouro. Ele sentou-se à mesa na sala de banquetes e foi-lhe servida uma lauta refeição. Nada lhe faltou ao seu bel-prazer. Havia vinhos requintados, lindas flores, carne e cereais à vontade, raros perfumes e música maravilhosa. Recostou-se em almofadas macias, cobertas de pura seda. Sentiu-se, genuinamente, o homem mais feliz do mundo.

- Ah, isso é que é vida! - confessou a Dionísio, que se encontrava sentado à mesa, na outra extremidade. - Nunca me diverti tanto!

Ao levar a taça de vinho à boca, levantou o olhar para o teto. O que era aquilo ali pendurado, com a ponta quase tocando sua cabeça?

Dâmocles enrijeceu-se todo. O sorriso fugiu-lhe dos lábios e o rosto empalideceu. Suas mãos estremeceram. Esqueceu-se da comida, do vinho, da música. Só quis saber de ir embora dali, para bem longe do palácio, para onde quer que fosse. Pois pendia bem acima de sua cabeça uma espada, presa ao teto por um único fio da crina de um cavalo. A lâmina brilhava, apontando diretamente para os seus olhos. Ele foi se levantando, pronto para sair correndo, mas deteve-se, temendo que um movimento brusco pudesse arrebentar aquele fiozinho fino e fizesse com que a espada lhe caísse sobre a cabeça. Ficou paralisado, preso ao assento.

- O que foi, meu amigo? - perguntou Dionísio - Parece que você perdeu o apetite.

- Essa espada! Essa espada! - disse o outro, num sussurro. - Você não está vendo?

- É claro que estou. Vejo-a todos os dias. Está sempre pendendo sobre a minha cabeça, sabe? Há sempre a possibilidade de que alguém ou alguma coisa parta o fio. Olhe ao seu redor com mais atenção. Existem espadas mais afiadas e perigosas que essa daí: Um dos meus conselheiros pode ficar enciumado do meu poder e tentar me matar. As pessoas podem espalhar mentiras a meu respeito, para jogar o povo contra mim. Pode ser que um reino vizinho envie seu exército para tomar-me o trono. Meu guarda pessoal pode ser comprado, alguma de minhas concubinas ou até minha rainha pode levar o punhal ao meu leito. Qualquer decisão errada pode ser o motivo. Ou talvez nem isso. Quem quer liderar precisa estar disposto a aceitar esses riscos. Eles vêm junto com o poder, percebe?

- É claro que percebo! - disse Dâmocles - vejo agora que eu estava enganado e que você tem muitas outras coisas no que pensar além de sua riqueza e fama. Por favor, assuma seu lugar e deixe-me voltar para minha casa.

Até o fim de seus dias, Dâmocles não voltou a querer trocar de lugar com o rei, nem por um minuto sequer.

Quem seria capaz de compreender a real situação da sua íntima responsabilidade sobre o seu lugar no mundo?
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Despertando a Consciência (1852)
por Frederick Douglass

Frederick Douglass nasceu escravo em 1817 e foi criado pelo avô numa plantação no estado de Maryland até que foi enviado para trabalhar em Baltimore com oito anos de idade. Lá, com a ajuda da esposa de seu dono, começou seus estudos, o que era proibido por lei. 

Em 1838 fugiu e foi se estabelecer em New Bedford, no estado de Massachusetts, e começou a trabalhar pela causa anti-escravagista. Em pouco tempo era considerado o principal abolicionista negro do país e um dos oradores mais brilhantes.

Em 1852 foi convidado a fazer um discurso pelo Dia da Independência em Rochester, no estado de Nova York, eis algumas partes do seu discurso:

"Meus concidadãos, peço seu consentimento para perguntar por que fui chamado a proferir hoje este discurso. O que temos, eu ou aqueles a quem represento, a ver com a independência nacional? Serão aqueles sublimes princípios de liberdade política ou de justiça natural, incorporados na Declaração de Independência, extensivos a nós [negros]? E estarei eu, portanto, sendo chamado para trazer nossa humilde oferenda ao altar nacional, e para confessar os benefícios e expressar devota gratidão pelas bênçãos para nós resultantes da sua independência?

Quisera Deus (...) Mas a situação vigente não é essa. Digo com a triste noção da disparidade entre nós. Não estou incluido no âmbito deste glorioso aniversário! Sua ilustre independência revela apenas a incomensurável distância entre nós. As bênçãos que, hoje, vocês celebram não são desfrutadas em comunhão. O rico legado de justiça, liberdade, prosperidade e independência é compartilhado por vocês, não por mim. O sol lhes trazia luz e saúde enquanto me trazia ferro, chicote e morte. Este 4 de julho é seu, não meu. (...)
Frederick Douglass

Numa época como esta é necessário o ferro em brasa, não o argumento convincente. Ah, se eu tivesse a habilidade, e pudesse chegar aos ouvidos da nação, iria hoje verter uma abrasadora torrente de escárnio mordaz e represálias ensurdecedoras (...) Pois não é a luz que se faz necessária, mas o fogo; não é a chuva delicada, mas o trovão. Precisamos da tempestade, do turbilhão e do terremoto. O sentimento desta nação precisa ser despertado; a nação tem que se conscientizar!

(...) Não há nação de selvagens, não hã sequer uma nação sobre a face da terra que seja culpada de práticas mais chocantes e sanguinárias do que a dos Estados Unidos neste exato momento."

Que tipo de coragem é aquela que nasce de um caráter que te torna responsável por um legado, por aquilo que torna a sua jornada pessoal parte significativa da jornada de outros? 

Renato Kress

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(*) Dioniso, sem o segundo "i", é o nome do deus do vinho e Dionísio, com o "i" entre o "s" e o "o" é um nome próprio. 

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