terça-feira, 12 de agosto de 2014

3 conceitos sobre "A Verdade" (e como encaixá-los).

Vivemos num mundo criado por uma economia da escassez onde precisamos de ansiedade para vender serenidade, de violência para vender paz, de grosseria para vender gentileza, de agressão para vender afeto, de incerteza para vender tranquilidade, de dúvidas para vender certezas, de medo para vender segurança, de crédito para vender fé. Isso alimenta a indústria farmacêutica tanto quanto a automobilística e a de viagens. O problema é que todas as soluções, uma vez "compradas", desvanecem no ar deixando um ralo e fugaz sabor de inconstância e fragilidade. 

Depois de um tempo dentro desse jogo de substituições de soluções fragmentadas é fácil nos tornarmos céticos crônicos alimentando uma cultura de pessimismo e desistência. Fica cada vez mais fácil tanto atribuir as esperanças aos jovens quanto, simultaneamente, ridicularizá-los por ainda ousarem acreditar que por trás de cada solução não há um problema a espera de vender a próxima "solução". Seguimos pelas ruas, bares, revistas e livros perdendo e encontrando verdades momentâneas, nos atendo a nada, resignando-nos ao lugar que o hiperprodutivo ("Todo Poderoso") Mercado nos colocou: somos compradores, "consumidores", e essa é toda a verdade!

Mas e se não fosse?

Afim de saber a verdadeira verdade
Muitas vezes, quando me perguntam o motivo de gostar de trabalhar com mitos, me pego repensando a
Esses daí de cima foram contemporâneos.
Será que viam a mesma "verdade" histórica?
mesma questão: "Por quê trabalhar com a mentira?" afinal, todos sabem que "esses deuses não existem", que "essas histórias, na sua maioria, são produtos de povos extintos em épocas que as pessoas não tinham acesso à 'verdade'". Ok. E quando tivemos mesmo acesso a ela? E o que essa ideia de "verdade" culturalmente expressa, nos trouxe?

Antes de começar a comentar sobre um grupo de alemães que acreditou ter encontrado "A Verdade" e quis que o mundo inteiro se ajoelhasse perante "Ela" e antes de dizer como isso se repete no Oriente Médio ou mesmo nas grandes emissoras de televisões pelo mundo hoje em dia, que tal passear por esse termo: "Verdade"?

Raízes e culturas
Ao contrário do que a grande parte das pessoas crêem não existem culturas "puras", intocadas, imóveis no tempo e no espaço, condenadas num limbo do "Eterno Retorno" e da eterna repetição. Culturas são móveis, adaptáveis e cocriativas. Novas formas de dançar, passar conhecimento, falar sobre o mundo, identificar doenças, ingerir alimentos, resolver conflitos são criadas dentro das culturas constantemente, eternamente. Enquanto houver humanos, esses caóticos e mutáveis seres animados - dotados dessa estranha coisa mutável chamada vida -, as culturas, formadas por esses humanos, também sofrerão mudanças. Internas ou externas.

Na nossa cultura ocidental* a ideia de "verdade" vêm de três principais fontes: Grega, Latina e Hebraica. Elas têm significados diferentes, se referem a coisas diferentes e se localizam em momentos diferentes do tempo. Então não é à toa que nos enrolamos quando procuramos a "verdade" no Ocidente.

A verdade grega
Em grego verdade é Aletheia e significa: "o não oculto", "o não escondido", "o não dissimulado". A verdade é uma manifestação daquilo que existe e se apresenta como é. Areia é areia, perna é perna, pedra é pedra. O verdadeiro, para o grego, é o evidente, aquilo que as evidências visuais, auditivas e cinestésicas provaram ser "verdadeiro", ou real. A verdade, para um grego, é clara, estruturada e visível.

Você é sincero?
A verdade grega é uma qualidade das coisas e está nas coisas. Isso se aplica a questões como a distinção
O problema com a "verdade" revelada
é quando tentamos impor ela aos outros.
entre a essência e a aparência. Por exemplo, você é sincero? A ideia de sinceridade vem da arte romana da escultura. Quando uma estátua tinha alguns erros ou imperfeições era comum que os artistas, para não jogar o trabalho fora, corrigissem uma ou outra martelada em excesso com um pouco de cera da cor do mármore, para disfarçar aos olhos do comprador. Era comum também que o comprador perguntasse se aquele era um trabalho "sincero", ou seja: "sem cera", íntegro.

Se ser sincero significa também que não procuramos disfarçar nossas imperfeições então acho que poucos de nós pode se considerar assim. Pelos mais variados motivos: pais querem dar o exemplo a seus filhos, políticos querem passar uma imagem positiva de si mesmos a seus eleitores, todo mundo pode esconder aquela espinha que brotou no dia do primeiro encontro. Isso sem mencionar nossa persona, nossa máscara social aceitável que formamos para nos defender diante do mundo.

A verdade romana
Em latim a verdade é Veritas e significa "precisão", "rigor", "exatidão". Aplica-se principalmente a um relato, uma história e a seus detalhes e pormenores. Veritas se refere à linguagem enquanto narrativa, porque a narrativa é o que constrói o nosso entendimento da realidade. A construção da nossa visão de mundo depende de como tecemos os fatos, sujeitos, intenções e contextos numa espécie de tapeçaria argumentativa que nos convença de que a realidade, tal como ela se apresenta, "faz sentido".

O oposto do conceito de Veritas é o conceito de "falsificação", ou mentira. No conceito de Veritas os relatos é que são verdadeiros ou falsos, no caso "mentirosos". Então o conceito de Veritas é bem delimitado e excludente, porque depende não só da veracidade (possibilidade de que algo seja verdade), mas também da memória e da acuidade sensorial (tons, cheiros, formas, texturas etc) para se delimitar se algo é ou não "verdadeiro".

Perspectiva e neutralidade
Essa leitura da verdade não permite nenhum espaço para diferentes perspectivas, pontos de vista ou liberdade interpretativa. Duas pessoas não vêem a mesma situação da mesma forma. No mínimo seu enfoque é determinado por suas experiências, educação, socialização, crenças e valores, o que torna impossível que tenham exatamente a mesma leitura de um fato.

Ainda assim é por trás dessa leitura, desse conceito de "verdade" que o jornalismo contemporâneo apóia sua ideia de "neutralidade" na hora de noticiar um fato. Atrás da ideia de que seria possível contar um relato sem um viés, como se repórteres fossem apenas reprodutores de notícias, sem histórias pessoais, compreensões diferentes ou leituras complementares. Assim, ignorando o óbvio, ficamos sabendo da "verdade" sobre a política econômica do governo e da "verdade" por trás do estresse e da fórmula x ou y de emagrecimento para a "barriga negativa".

A verdade hebraica
Em hebraico, uma terceira tradição que está no cerne da cultura do ocidente, verdade se diz Emunah e poderíamos traduzir como "confiança". Dessa forma Deus ou as pessoas são dignas (ou não) de confiança, de fé, a partir do momento em que cumprem o que prometem, que mantém fidelidade à palavra dada.

Emunah contém um forte componente de expectativa de que uma promessa se cumpra, de forma que a ideia de verdade passa a estar ligada diretamente às noções de crença e de esperança, com um foco no futuro, naquilo que virá. Emunah tem a mesma raiz da palavra "amém" (assim seja), o que faz com que a forma mais plena, a expressão mais perfeita de Emunah seja justamente a profecia, a crença "naquilo que virá" ou "naquilo que será".

A verdade como promessa e revelação

Um pouco dessa atmosfera mágica de uma verdade última revelada é o que os profissionais do marketing buscam injetar em quaisquer produtos, seja num videogame, num filme, num sabão em pó, numa novela ou num candidato à presidência: "aguardem! O melhor está por vir!".

A promessa da eterna promessa

Esse tipo de expectativa é que, num mundo como o nosso em que precisamos dar conta de consumir os produtos de uma hiperprodutividade antiecológica e nada sustentável, gera o nosso descontentamento e ceticismo com as soluções "milagrosas" que estejam já no cardápio ou ainda por vir.

Afim de saber a verdadeira verdade
Entre aquilo que é, Aletheia, aquilo que foi, Veritas, e aquilo que será, Emunah, uma pergunta se torna necessária: qual é a sua verdade? O que te toca a ponto de definir a narrativa da sua vida? É um valor comungado por muitos, um sonho individual, um desejo íntimo, um trabalho em especial, uma busca interior, uma criação exterior, uma descoberta ou um aprendizado, um instante de satisfação que só virá no leito de morte ou uma sucessão de momentos cujos ápices são marcados pela própria consciência de ter feito o melhor?

Será que a verdade dos seus pais também é a sua? A verdade que você busca é algo que já foi ou que será? E se ela já é, que tipo de jornada te fará conectá-la (ou reconectá-la)? Quando você se sentiu em contato com a sua verdade pela última vez?

Para o processo do coaching não nos importam quantas verdades externas ou "fórmulas do sucesso" ou obviedades culturais nós conheçamos, mas sim perceber, íntegra e intimamente se elas fazem parte da nossa verdade. Então, qual é a sua verdade?

Texto por Renato Kress
Criador do método Coach Quíron

(*) Se é que é possível falar em cultura ocidental num apanhado indiferenciado, mas vamos usar esse recorte para não nos alongarmos demais

Um comentário:

  1. Muito bom!! É difícil mesmo achar nossa própria verdade. As vezes achamos que estamos em contato com ela, mas é pura ilusão. Parabéns pelo texto! Abraços

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