quinta-feira, 24 de julho de 2014

Memento Mori ("Lembre-se de que você vai morrer")

Num espaço muito curto de tempo a literatura brasileira sofreu seguidas e dolorosas perdas. João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves e Ariano Suassuna. Deixaram de comunicar suas finas ironias e doces esperanças, suas poderosas e emblemáticas opiniões nos diários, mas, acima de tudo, já não irão reflorestar novos jardins imaginários na nossa imaginação, mas deixaram obras cujo florescer está na memória e história de cada um dos que provaram o néctar das suas letras.

Leituras e costuras
Sempre que leio um livro costumo ligá-lo à fase ou situação em que estou passando na vida. Assim ambos tornam-se tanto inseparáveis quanto partes íntimas de uma história que não é exatamente só aquela que o autor pretendia. Torna-se algo mais. É como se a melodia da vida, como um todo, subisse um tom e tornasse mais densa e intensa a experiência de estarmos vivos talvez pelo simples fato de que conectamos e costuramos palavras alheias aos nossos atos e nossas leituras do mundo a um mundo que só existe na cabeça do autor (e de seus leitores). São essas conexões que ampliam o viver.

Existe uma citação de Émile Zola que diz: "Estamos aqui para viver em voz alta". Talvez seja um pouco disso.

"Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre."  - Ariano Suassuna, in O Auto da Compadecida

Cosendo letras
Três potentes perdas para quem aprecia o prazer da boa literatura. Três estilos diferentes que me remontam a diferentes fases da minha própria vida. Um início de intimismo esperançoso me chegou por um livro de capa branca com uma foto do mar "O Encontro E Terno - Crônicas", meu primeiro livro do Rubem Alves, que ganhei de uma ex namorada. Foram crônicas devoradas com a avidez com que eu via e engolia a vida àquele tempo. O ceticismo com que eu encarava a vida ao ler passagens da "Casa dos Budas Ditosos" de João Ubaldo Ribeiro foi presenteado com um humor espiritualizado tão delicioso que amaciou os duros tijolos de realidade com os quais a vida me presenteava diariamente em outra fase. O florir intenso das metáforas e palavras deliciosamente bem encaixadas e a sabedoria profunda que reside nas almas simples e situações inusitadas me inspirou a ver o cotidiano como uma deliciosa comédia de erros em que estamos todos errados a todo momento que não reconhecermos, em nós, um quê de palhaços, no melhor sentido do termo.

Lembre-se
"Memento Mori" é uma citação latina que significa "lembre-se de que você irá morrer", ou "lembre-se de que você é mortal". E é algo que me faz pensar muito quando trabalho com meus clientes. A morte, essa incessante fadiga da matéria que nos iguala aos mais heróicos ou vis seres humanos, é algo que potencializa a vida quando lembrada. Talvez por isso ela seja, hoje em dia, tão absurdamente retardada, negada, silenciada.

Vita Brevis
Precisamos almofadar o impacto incessante do tempo para que possamos viver vidas intimamente sem significado. Apenas vidas sem significado íntimo podem permitir que aceitemos a avalanche de significados que nos vêm de fora, significados compráveis, experiências patrocinadas, situações e produtos em "porção única", cuja fruição nos deixará, apenas, com o vácuo do desejo do retorno do momento da fruição. E voltaremos a consumir para preencher, de fora para dentro, um vácuo que cresce de dentro para fora.

Passerà
O lembrar de morrer simbólico é lembrar que tudo passa. Que essa fase da nossa vida passará e nos trará outra, com novos desafios. Lembrar que morremos crianças para renascer adultos, que morremos aquele relacionamento para renascer mais sábios e tolerantes em outros, que a cada sete anos - dizem cientistas - todas as células do nosso corpo se renovam e nos fazem, fisicamente, um outro ser. Lembrar que provavelmente átomos da pele do meu cotovelo, enrugada, pertenceram mesmo a um belo e gigantesco traseiro de um rebolativo estegossauro. Somos cristas de ondas formadas sobre o refluxo de ondas passadas num imenso mar de átomos.

Fins e refinamentos
O lembrar de morrer físico é lembrar que é preciso dar algum significado para a experiência de estarmos vivos. É lembrar que adiar o significado não adia o morrer, apenas a qualidade, a intensidade e o entusiasmo particular do nosso viver. Esse entusiasmo que quando nos invade, como uma onda bombeada por uma cardia intuitiva, nos torna dignos das saudades e amores alheios.

Lembre-se de que você vai morrer.

por Renato Kress
Coach Quíron

Nenhum comentário:

Postar um comentário