terça-feira, 24 de junho de 2014

8 perguntas para as minhas dúvidas

Não acho que a humanidade esteja perdida, mas vejo todos os interesses do mundo em que acreditemos que ela esteja. Afinal nunca precisamos tanto de ansiedade para vender serenidade, de violência para vender paz, de grosseria para vender gentileza. Fico pensando que cada vez mais precisamos de agressão para podermos vender afeto, de incerteza para vender tranquilidade, de dúvidas para vender certezas, de medo para vender segurança e de crédito para vender fé.

Enigmas, dúvidas, incerteza

É claro que todos temos dúvidas e a dúvida vai ser parte integrante da vida, para sempre. Os gregos criaram - ou intuíram - a história da caixa de Pandora justamente porque "sabiam que nada sabiam" sobre a natureza fluídica dos humores das mulheres. Eram um universo à parte, um enigma e uma armadilha em potencial. Ainda que pudessem ser o Éden, Shangri-lá ou mesmo - ainda na Grécia - a "Atlântida" tão perto e tão longe das suas próprias realidades, eram também as grandes mães-pantanosas, as "senhoras das feras", projetadas em deusas como Ártemis, a esquiva e selvagem deusa da caça.
A natureza da mulher,
a grande dúvida do
Ocidente patriarcal

Você duvida?
Duvidar significa "não acreditar, não admitir, vacilar, hesitar, desconfiar"¹, e por quê hesitamos tanto, ultimamente? Paro por um minuto e penso nas "declarações oficiais" dos assessores de imprensa dos políticos, nas campanhas publicitárias do sabão em pó, dos dentistas nas propagandas de pasta de dente, nos analistas financeiros da Bolsa de Valores. Todos parecem desesperadamente em busca de um único ponto: credibilidade.

Só precisamos dar provas inequívocas de nossa credibilidade quando ela está muito abalada. Ninguém se sente plenamente confortável tendo de jurar, não é mesmo? 


Parece que, de alguma forma, a economia - o jogo das trocas no mundo - chegou a um ponto em comum com a religião: A fé passou a ser o principal ponto de ambas! 

Cálculo da fé, ou a religião na economia

Se eu duvido de que um determinado sabão em pó vai efetivamente "lavar mais branco" ou "reavivar as cores" eu simplesmente compro outro! Por que o segundo sabão é efetivamente melhor? Não necessariamente. Mas porque eu acredito que ele seja! E o crédito - palavra cuja raiz remonta ao latim "credere";"acreditar" - parece ser realmente o ponto principal nas economias mundiais!

Todos os discursos de todos os economistas "de Mercado" podem ser resumidos em uma busca doentia por "credibilidade", "flexibilidade" e "liquidez". Algo que poderíamos traduzir para o português do nosso dia a dia como: "Acredita em mim, se vira e me passa o dinheiro". E essa lógica está em quase todas as subculturas de vendas e propagandas. Se aplica a shampoos, dietas, auto-ajudas, modas gerenciais, carros... a lista parece infinita, e talvez seja!


Orientar a dúvida


"A dúvida é o sal do espírito, sem uma pitada de dúvida todos os conhecimentos em breve apodreceriam.- Émile-Auguste Chartier

É a partir desse ponto que temos de levantar a dúvida certa: O que se pode fazer para além disso? Ou o que se pode fazer para não naufragarmos nessa lógica triste de estarmos sempre semeando a dúvida para vendermos certezas descartáveis? É uma pergunta que eu me colocaria, num processo de auto-coach. É uma pergunta que eu faria para os meus clientes. Afinal, o grande propósito do meu trabalho é justamente alinhar as metas dos meus clientes com seus valores para que eles possam alcançar a autonomia e não fiquem dependentes da minha pontual colaboração. E como alcançar a autonomia se não através de uma coerência íntima entre o que se acredita e o que se faz, verdadeiramente?



Integrando a dúvida

"Crer é muito monótono, a dúvida é apaixonante" - Oscar Wilde


Essa semana recebi meu segundo hóspede para a Copa do Mundo, Stephan, um gigante belga com um ótimo humor. Ao explicar meu trabalho como coach para ele fiquei impressionado com o seu discurso sobre o conceito de "integridade". Expliquei a ele que minha missão, como coach, é que meus clientes integrem seus valores e crenças com suas metas e, então, tivemos uma incrível conversa sobre o processo de "integrar" e o conceito de integridade. 


O conceito de integridade nasceu através do desenvolvimento da linguagem matemática no século XIV, com o sentido de "determinar a integral de uma função", mas logo se desenvolveu para a ideia de "completar" um processo ou uma parte a um todo, na alquimia medieval. O que compreendemos hoje em dia como "integrar" é justamente o que fazemos quando duvidamos de forma salutar de uma novidade, ideia ou conceito: experimentamos sua validade e, se acreditarmos que vale a pena levá-la conosco, a "integramos" a nós. Provavelmente desse processo nasça a nossa consciência de completude e equilíbrio, de harmonia interior quando nos sentimos "íntegros". Talvez por isso a palavra "integridade" nos venha associada a noções como coerência interna ou coesão.

A dúvida salutar
Mas por que é tão raro que nos sintamos efetivamente "íntegros"? Por que o sentimento de desintegração é tão mais comum em nossas vidas? Uma das minhas apostas é de que, numa sociedade construída sobre a necessidade ininterrupta de vender mais e mais, é necessário que a maior parte da população se sinta efetivamente dispersa, incerta, insegura, "desintegrada" emocional, física e racionalmente. Assim é possível vender toda sorte de paliativos. 

Mas de qualquer forma, como o Coach Quíron não trabalha com foco negativo (críticas, evitar o errado, fugir do problema etc), mas apenas com o foco positivo (perseguir o que o cliente creia como certo, encontrar a solução, desenvolver novas interpretações e caminhos etc), mais importante do que mergulhar numa crítica ao capitalismo é direcionar nossa energia para o que podemos fazer dentro dessa sociedade e dentro desse contexto. 

Dúvida e dissenso
Boa parte das nossas dúvidas são geradas por comparações externas: "O que a família vai achar? Meus amigos apoiariam? Será que o Mercado vai acolher minha profissão? O que a moda está prescrevendo para essa temporada?".



O engraçado, quando se presta um pouco de atenção nas histórias dos nossos avós ou mesmo dos nossos pais é que é bem claro, para qualquer um, que os desvios (ou dissensos) de ontem podem muito bem se tornar as verdades estabelecidas de hoje! 

A dúvida é a raiz da certeza e o fruto da certeza carrega a semente da dúvida

A própria palavra dissenso, que significa "divergir" ou "discordar" começou a ser usada no contexto das divisões entre as ideias religiosas em termos de crenças e opiniões. Os divergentes da Igreja Anglicana, na Inglaterra, foram os primeiros a serem chamados de "divergentes". Esses "divergentes" foram os batistas, metodistas, quacres e seitas similares que migraram para os Estados Unidos e, posteriormente, desenvolveram o sistema econômico mundial que é o "padrão" hoje em dia.

Duvidar pode ser uma ponte para um novo construir. Se a certeza tende a nos promover um caminho mais "sólido", ao mesmo tempo, também, tudo aquilo que se solidifica em demasia, cristaliza e rompe mais facilmente. Ainda usando a metáfora da ponte: nenhuma ponte sobrevive sem manutenção, e essa manutenção é feita integrando novos materiais e retirando outros, periodicamente. Ao longo de um tempo, mesmo uma dúvida que se tornou ponte para um novo estado íntimo de maior integridade vai sendo completamente refeita e não é, em essência, mais a mesma de quando foi erguida. 

Finalmente: oito perguntas para nossas dúvidas:
1. E as nossas dúvidas, estão nos conduzindo a quê?
2. Se pudéssemos modificá-las para que elas nos levassem às nossas metas maiores, como isso seria feito?
3. Alguma vez já perguntamos a alguma dúvida nossa: Oi dúvida, você é pertinente?
4. Esse é o melhor momento para duvidar?
5. Essa dúvida é uma proteção, um alarme ou uma fuga? 

6. E se brincássemos com as nossas dúvidas? Como descobriríamos o que há por trás delas?
7. E se interrogássemos elas: Por que eu duvido disso e não daquilo?
8. Se pressionássemos nossa insegurança e incerteza, o que elas diriam?


Renato Kress
Criador do Coach Quíron

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¹- Cunha, Antonio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira.


2 comentários:

  1. Seu texto me lembra o diálogo de Alice com o mestre gato. "Mas eu só queria saber que caminho tomar", "Isso depende pra onde você quer ir". A gente sempre duvida dos caminhos, se é certo ou errado, se é verdadeiro ou falso, como se a vida pudesse ser medida dessa forma. E aí de repente você bota fé em algo, ou alguém e pula mesmo sabendo que pode cair, porque naquele momento você não duvida. Me parece que esses momentos de pulsão são os momentos que a vida se faz real, mas duvido um pouco disso. Também não tenho muita certeza do que é ou não realidade. No entanto, estou quase certa do que me faz diferente de outros animais e seres humanos é essa capacidade de duvidar. Isso é agonizantemente fantástico.

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