terça-feira, 15 de julho de 2014

Considerações sobre a existência dos monstros

"- Mas Renato, você não acha meio ultrapassado estudar mitologia?"
É tão comum ouvir isso de pessoas dentro e fora do ambiente acadêmico que às vezes me pergunto até que ponto a capacidade de fazer conexões entre metáforas e comportamentos, entre histórias e ideias, não tem sido muito bem exercitada. Eu vejo centauros, minotauros e medusas por todo lado.

Essa semana assistimos à final da Copa do Mundo no Brasil. Vitória da disciplina e do empenho calculado alemão contra a determinação desenfreada de uma Argentina que fez de tudo para conseguir erguer a taça dentro do Maracanã. Assistimos aos ânimos acirrados de policiais e população agredindo argentinos verbal, emocional e fisicamente. Assistimos também à violência policial desmedida, injustificada e inglória na Praça Saens Pena, na Tijuca, no Rio de Janeiro. Assistimos também ao terror propagado pelo governo israelense contra a população palestina, assassinando várias pessoas, primordialmente crianças, com bombardeios incessantes, iniciados no dia da final do Mundial de Futebol. Assistimos o que há de pior na alma humana se manifestar junto com o que deveríamos ter de melhor.

Onde estão os monstros?
Um montro, segundo o dicionário de etimologia, é um "corpo organizado, que apresenta conformação anômala em todas ou em algumas de suas partes', um 'animal de grandeza desmedida', um 'ser de conformação extravagante, imaginado pela mitologia'

Eu vejo medusas
Qualquer pessoa, em qualquer país do mundo, quando liga uma televisão e senta no sofá, por duas, três ou cinco horas diárias, está ali, de frente para uma Medusa contemporânea, empedrado, engessado, mimetizado, hipnotizado, com o fluxo interno das ideias sendo controlado por esse monstro digital. Seus membros se tornam pesados, o volume da tv naturalmente aumenta quando chega no comercial e talvez nós nem percebamos mais isso, uma nova forma de sabão em pó foi criada e um novo amortecimento criado por aquela empresa de tênis que financia a Copa talvez já esteja amaciando a seriedade com que veríamos uma guerra se as imagens não fossem noturnas, distantes, como telas neon de fliperamas dos anos oitenta. Talvez um novo amortecedor neural já esteja disponível nas farmácias, porque eu não posso sentir tanto medo, insegurança, luto, dor. Eu preciso viajar, comprar uma tv maior, ir ao cinema, tirar fotos com os amigos. Eu preciso me anestesiar, an-sthesia, "perder a sensibilidade". Eu vejo medusas. E você?

Eu vejo centauros
Você provavelmente já ouviu falar de centauros. Seres monstruosos da mitologia grega, cuja cabeça, braços e tronco são de seres humanos, e o resto do corpo e pernas de um cavalo. Segundo a mitologia os centauros vivem nas montanhas e alimentam-se de carne crua; não podem beber vinho sem embriagar-se. são muito inclinados a raptar e violentar mulheres. Geralmente aparecem em bandos e significam a besta no homem, de infinitos aspectos.
Eu vejo centauros

Segundo contam as lendas, os centauros repartiram-se em duas grandes famílias: Os filhos de Íxion e de uma das oceânidas (nome dado às três mil ninfas, filhas de Tétis e de seu irmão Oceano) e simbolizam a força bruta, insensata e cega e, de outro lado, os filhos de Filira e de Cronos, dentre os quais o centauro Quíron é o mais famoso, representam, ao contrário, a força aliada à bondade, a serviço dos bons combates.

Nas obras de arte os rostos dos centauros traz geralmente a marca da tristeza. Eles simbolizam a concupiscência carnal, com todas as suas brutais violências, e que torna o homem semelhante às bestas quando não é equilibrada pela força espiritual. São a antítese dos cavaleiros, que amansam e dominam as forças elementares, ao passo que o primeiro grupo de centauros, à exceção de Quíron, são dominados pelos instintos selvagens descontrolados.

Você vê a cavalaria da Polícia Militar do Rio de Janeiro avançando sobre homens e mulheres armados de ideias, cartazes e câmeras? Eu vejo centauros.

Pandora
Os monstros nascem do mesmo lugar onde nascem as ideias, os sonhos e as esperanças, da alma humana. Nossa alma é como a Caixa de Pandora. Pode conter toda espécie de monstros, pragas, possibilidades de exercer o poder através de centauros treinados ou de operar o controle e a submissão por meio de medusas patrocinadas. O que nos querem fazer esquecer, todas as forças, é que possuímos, junto com o nascedouro dos monstros, o manancial primitivo das esperanças.


Subir cansa a princípio e
fortalece os músculos a longo
prazo. Descer  é fácil a princípio
e enfraquece as
articulações a longo prazo.
O corpo é sábio.
O nome "Pandora" significa "todos os dons". A Caixa de Pandora é a caixa de quem possui dons para tudo, do potencial para o melhor e o pior. Parece que muito convenientemente para quem lucra com o medo, andamos esquecendo isso. Produzimos esperanças a todo momento. Tantas ou mais quanto os monstros que deixamos fluir através de nossas ações ou omissões. Por medo dessas esperanças é que a lógica do lucro, a lógica doentia do Mercado - o universo de Hermes, deus dos ladrões e do comércio -, não conseguindo suprimir a humana capacidade de desejar ou lutar por algo melhor, procura comercializar essa vontade, procura transformar todos os nossos desejos em produtos passíveis de consumo. E ele dá um preço para cada desejo-produto. E um prazo para que se consuma. Eu vejo a caixa de Pandora. Eu vejo a esperança dentro dela.

A Sombra de Hermes
"Uma rádio brasileira induziu jovens ricos a queimar pobres que dormem nas ruas. Nas lanchonetes, vêem-se jovens ricos jogando batatas fritas no chão para que pivetes as apanhem e comam, como fazem os animais. Esse comportamento só é possível quando desaparece o sentimento de semelhança entre os seres humanos e surge uma lógica capaz de explicar com naturalidade o que parece eticamente absurdo. É a lógica da apartação, que constrói a ética da indiferença e toma conta das sociedades com desenvolvimento separado. (...)"Lógica da Apartação, por Cristóvam Buarque
 Vemos o poder aquisitivo substituir o valor pessoal. Vemos o direito ser aplicado com base na cor do seu cartão de crédito. Um panorama estranho onde cada vez mais vale quem gasta e o quanto gasta. Me pergunto quando essa perspectiva limitada pela financeirização compulsiva do mundo começará a se desgastar. Existem valores que não podem ser financeirizados. Existe uma medicina que não está à venda, uma cura que não anestesie, uma venda natural, um consumo saudável. Todos eles estão por trás do véu da Farsa desse "deus dinheiro" que já não produz nada, que apenas se reproduz em si mesmo, como uma célula cancerígena. Eu vejo a pior face de Hermes.

Escolhas e visões
Hermes também brinca, entretém, desenvolve, interroga, procura saber e conhecer. Ele também tem uma perspectiva positiva. Entre a família dos centauros temos Quíron, o centauro curador, que treinou Hércules, Teseu, Odisseu(Ulisses) e Aquiles, o centauro capaz de identificar o talento natural de cada herói e treiná-lo à exaustão, até que ele se tornasse o melhor possível, superando, sempre, seu mestre. As cobras no cabelo da medusa só hipnotizam na medida em que, presas à cabeça da górgona, não conseguem mover-se, naturalmente, trocar de pele e fluir e mudar, como a natureza da vida, em constante mutação. Liberar as cobras da cabeça da medusa em cada um de nós é escolher deixar fluir os medos, os anseios, as inseguranças, todas essas fontes de lucro para o Hermes sombrio, até que eles naturalmente passem, que se se deixem passar, como o fluxo natural da vida.

Nenhuma festa, nenhuma euforia pela conquista de um pentacampeonato é interminável. Nenhum luto pela perda de um campeonato de futebol é eterno. Nenhuma conquista de direitos é para sempre. Nenhuma derrota, na luta por dignidade, é o fim. Se estudo mitos - e pelo visto pretendo continuar para todo o sempre - é porque eles me ensinam que, no fluxo interminável das mudanças da vida, são o foco e a vontade que alimentam os que crescerão e sobreviverão.

O que você anda alimentando através dos seus pensamentos e comportamentos?

Renato Kress
Coach Quíron
Antropólogo e Cientista Político

2 comentários:

  1. Maravilhoso o texto e suas correlações, Renato! Gratidão! Faço parte daquela pessoas "para quem o mito e o imaginário não representam uma simples superestrutura, e muito menos uma ilusão, mas sim uma profunda realidade humana" E. Morin

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