segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Respire

Quase nariz com nariz numa mística partilha de sopros entre deus e rei. Com a mão direita, o faraó Sesóstris I, usando o pregueado toucado real, toca na cabeça do deus criador Ptah. Em resposta, a divindade, com aspecto de múmia para representar a sua imortalidade, abraça o rei e dá-lhe o sopro da vida, da estabilidade, da prosperidade e da saúde, tudo isso no relevo egípcio de mil e novecentos anos antes de Cristo. Abaixo dele a inscrição "tudo felicidade".
Antes de nascer, o bebê comunga do sopro da mãe, como antes da criação do nosso mundo, todas as tradições míticas colocam o "tempo dos tempos", o paraíso. O sopro anima o barro do nosso ser. É o choro forte do recém-nascido e a essência do vento, do espírito, da musa, do som. Os nossos sentimentos manifestam-se em variações de sopro, desde a respiração breve do pântano aos soluços, demasiado profundos para pôr em palavras, do intenso pesar. O sopro transporta outras coisas como a doença, as palavras duras e os aromas luxuriantes. Tudo "sopra".
Pense num bosque num dia de primavera, no sussurro das folhas, na ondulação das ervas, no tremor da luz salpicada. "O Tao é o sopro que nunca morre. É a Mãe de toda a criação", como diz o Tao te Ching. A Antiga Grécia percebia o sopro como algo interno e diáfano, como orvalho, às vezes visível e que se misturava e interagia com o ar. Ouvir, ver, cheirar e falar era soprar, às vezes representado na forma de raio ou de fogo; o sopro, misturado com a inteligência no sopro dos outros (conspirar, conspiração), e recuperado para dentro de si, aumentava o conhecimento e o poder.

O sopro também era identificado com a consciência, localizando-se o pensamento e os sentimentos nos pulmões, que interagiam com o coração, o sangue e a pulsação. "Nos homens sábios os olhos, a língua, as orelhas e a mente estão enraizados no meio do peito" (Tao Te Ching). E os deuses, como inspiração - do latim "inspirare" (respirar), devem ser experienciados num repentino influxo de amor, coragem, cólera, profecia ou esplendor.
Imaginar a respiração como essência e troca vai ao encontro à própria realidade química do ato de respirar. Operamos a entrada de oxigênio e liberamos dióxido de carbono do corpo através de um complicado mecanismo interno que bombeia e altera a pressão do ar no interior do corpo. A respiração liga a vida dos animais e das plantas: os animais consomem oxigênio e liberam dióxido de carbono, as plantas necessitam desse dióxido de carbono e produzem oxigênio. O corpo quase não armazena oxigênio, de forma que respirar é questão de urgência. Para os esquimós, a morte é "perder a respiração". Como a respiração acelera o corpo, ela é identificada com a alma, que se pensa levantar vôo com a última respiração da vida.
Nós respiramos ou somos respirados? O Prana sânscrito, "sopro", refere-se à fonte e força da vida e à energia vibratória de toda manifestação. Os textos sagrados da Ìndia descrevem o sopro vital dos seres vivos como rítmicos e pulsantes, como a forma microcósmica do dia e da noite que se alternam, na atividade e no repouso, do tempo cósmico. No intervalo entre sucessivas criações, o deus Vixnu (Vixenu, as traduções têm liberdade na grafia da palavra), após ter retomado o universo para si (inspiração, movimento centrípeta, inflação), adormece, flutuando sobre o oceano cósmico nos meandros da serpente Ananda, "o infinito". O seu sopro é profundo, sonoro, rítmico, "a melodia mágica da sonora criação e dissolução do mundo" (Heinrich Zimmer, As Filosofias da Índia, 35).
É a canção do ganso imortal, a suave ham-sa do sopro divino de vida no interior do corpo do universo e no núcleo do indivíduo. "Assim como os raios se mantêm unidos numa roda, tudo se mantém junto na respiração" (Upanishade Chandogya). O praticante de Yoga, numa controlada inalação "ham" e exalação "sa", ouve a mesma melodia que a da presença interna do Atman, ou Self supremo.
Expirar também é sinônimo de morrer. Várias metáforas ligam a morte à ideia de "último suspiro". Entre o que de nós vem e o que de nós se vai, forma-se o tecido breve da existência, aquilo que chamamos de vida. Entre os excessos de introversão de palavras, notícias, ideias, pensamentos e planos, entre os excessos de extroversão de frases, conversas, anotações, expressões e criações, seguimos o rumo da nossa jornada. A vida se dá nos intervalos, ou enquanto houverem intervalos, de inspiração e recriação, de aprendizado e ensinamento, de enamoramento e apaixonamento, num eterno congregar e converter das nossas experiências.
Os artistas e os heróis são criadores de mundos, modeladores da realidade. E cada um deles, antes de sair em busca da sua realização, inspira-se, traz para dentro a força necessária para expansão do renascimento do universo ao seu redor. Antes de qualquer batalha, de qualquer criação, de qualquer "aventura", para o "lado de lá" do mundo, inspire-se. O observe o momento correto para agir, pois inspirar em excesso é explodir, assim como expirar em excesso é se exaurir.

Onde está teu equilíbrio? A alma é cíclica, como as luas e as marés, e nem todo dia é dia de Lua cheia até porque ninguém conseguiria viver de ressaca. Se teu corpo é teu vaso, onde você racha e onde você mingua?
Renato Kress

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